Introdução
Quase todos os textos abaixo foram postados no blog que fiz durante e logo após a viagem. Estão em ordem cronológia. Os dois últimos escritos, “O abismo” e “Considerações pessoais”, foram escritos aos poucos e finalizados um mês depois da minha volta ao Brasil.
Para ver algumas fotos, clique aqui.
—————————————————————————–
Lulea-Lá
Criei este blogue para comentar com os colegas e amigos minha viagem para a Universidade Tecnológica de Lulea, na Suécia.
sábado, 3 de abril de 2010
Prolegômenos
Hoje é Sábado de Aleuia.
Daqui a 8 dias embarco para a Suécia, onde vou dar palestras na Universidade de Lulea.
Esta cidade fica a 980km ao norte de Estocolmo e a 160km ao sul do Círculo Polar Ártico.
Veja Lulea pela webcam da rua principal
Já estou com frio. Por enquanto, só na barriga.
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Primeiras atividades
A viagem de Santos para Lulea demorou vinte horas e meia, entre carro, aviões e aeroportos.
O Geza, um dos professores daqui que já foi para a UNISANTOS, estava me esperando.
Ele e a Anita, outra professora que já também esteve na nossa universidade, estão se desdobrando para tornar minha estada agradável.
Nestes primeiros dias é preciso providenciar coisas práticas – acesso à internet, passes de ônibus, mapa da cidade, lugares onde comer. Só hoje foi possível atualizar o blog.
Ontem o frio estava totalmente suportável. A temperatura chegou a 12 graus – positivos! Quase calor, para os padrões da Lapônia. A neve é linda, quando não está misturada com lama…
Andei perto da praia. Tentei conversar com algumas pessoas, que recebem bem a abordagem, perguntam o que estou fazendo aqui, contam coisas da cidade. Encontrei um cinegrafista que já esteve no Brasil. Os suecos não são fechados, pelo contrário.
Visitei a Universidade, em meio aos afazeres burocráticos. Coisa mesmo de Primeiro Mundo, vou contando aos poucos.
À noite fui convidado pela Anita para mostrar um pouco de música brasileira num jantar das Soroptimistas. A gente faz cada coisa… mas foi interessante, a comida estava ótima. Escutei umas vinte senhoras falando em sueco. Vez ou outra uma delas traduzia algumas frase para que eu não ficasse totalmente por fora.
Quando toquei todas ficaram absolutamente caladas, ouvindo. Ninguém fez o menor ruído. Depois aplaudiram educadamente. Na saída, ao se despedirem, diziam: “Nice music!” Foram tão educadas e disciplinadas que nem sei se gostaram mesmo.
Hoje, dia 14, tentei dar uma volta pelos arredores, às 8:30. A temperatura estava em 4 graus. Voltei logo, a camiseta de manga comprida, outra de gola olímpica, moleton com capuz, gorro, luvas, nada estava dando conta do frio.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
Ando meio devagar com este blog… Vamos a algumas curiosidades.
O modo de vida por aqui é mesmo muito diferente. Lá pelas 4:30 da tarde não há quase mais ninguém na universidade. As ruas vão ficando desertas, por causa do frio. Ontem fui comer um sushi perto de casa, às 19:00, pois só dá para ir a pé a lugares bem próximos – e cedo, para os nossos costumes. Não dá pra andar 20 minutos no frio e, o que é pior, no vento. Também não dá para ir para a livraria, para o bar da esquina (não existe), para o shopping (nem de táxi, aqui tudo fecha cedo, no máximo às 20h). Pode ser que os nativos tenham outros recursos. Vou perguntar a eles. De minha parte, senti que estava preso em casa, como em prisão domiciliar, o que é muito estranho. Ainda bem que eu tinha muito o que fazer.
Eles andam muito depressa, aqui. Não sei se é por causa do frio, como dizem alguns. Comentei mais demoradamente essa observação com outra professora. Ela já esteve na Austrália, em Portugal e na Eslováquia, além de outros países que não me lembro. Disse que, de fato, nesses lugares se anda mais devagar. Até os gestos – por exemplo, pegar a comida no buffet – são rápidos, ao menos para os meus padrões. Hoje uma professora foi me mostrar onde é um dos restaurantes da universidade. Ela foi andando na frente, como eu já havia percebido em outros suecos. Não tem aquela coisa de, se vamos juntos, caminhamos um ao lado do outro. Talvez por que eu ande muito devagar… mas não se faz o esforço para andar lado a lado.
Na universidade tem gente de toda a parte do mundo. Ontem me perdi num dos prédios. Pedi informaçöes para dois rapazes negros, que me levaram até a sala que eu estava procurando. Um deles era da Somália, outro da Eritréia. Falam inglês e sueco, como quase todos os estudantes. Encontrei gente de Portugal, estudantes de Engenharia. Conversamos um pouco. O meu anfitriäo, Geza (que esteve em Santos) é húngaro, a mulher dele é filipina. Os filhos, gêmeos de 10 meses, nasceram aqui. Acho que isso tem o nome de globalização, assim como encontrar Nescafé, cerveja Skol, sabonete Palmolive ou desodorante Nivea nos supermercados. A primeira parte – gente do mundo inteiro convivendo – é fantástica. A segunda parte, as mesmas marcas por todo lado, é meio aborrecida, estereotipada.
Depois eu falo de trabalho, que, por enquanto, foi pouco. Na próxima semana começa a dureza.
Costumes, equívocos, preconceitos
Acontecem coisas engraçadas, devido às diferenças de costumes. Aqui os pedestres têm a total preferência. Pode-se atravessar a rua mesmo fora da faixa de segurança, os carros diminuem a marcha ou param. Pois bem, segundo meus reflexos santistas, fico parado, esperando os carros passarem, para não ser atropelado. Aí eles também param, e ficamos uns segundo olhando estupidamente um para o outro (não o carro, mas o motorista), até que eu me toco da situação e atravesso a rua. Por duas vezes eram senhoras ao volante, que ficaram irritadas com aquele sujeito atravancando o trânsito, pois, enquanto eu não atravessasse, elas não poderiam prosseguir. Fizeram gestos impacientes para que eu passasse logo. Era eu que estava empatando o tráfego, vejam só. Apesar de ter enfrentado isso praticamente todos os dias, instintivamente ainda fico estático na calçada ou na ilha do meio das avenidas, esperando os motoristas suecos prosseguirem, para grande irritação dos nativos.
Por causa do frio, todos os lugares têm uma ou duas portas, estas separadas por um pequeno espaço. Em geral abrem-se para fora, ao contrário do que estamos acostumados. Claro que já fiquei puxando maçanetas, meio desconcertado, até atinar com a direção correto do meu esforço. Agora sei que “drag” é puxar e “trick” significa empurrar. È interessante, também, que ninguém fica segurando a porta, se outra pessoa vem logo a seguir. Seguindo a etiqueta do Brasil, talvez do meu tempo, tendo a esperar a próxima pessoa, especialmente se for mulher. Elas ficam meio surpresas, agradecem. É inusitado. Perguntei para algumas pessoas se esse meu costume pode ser mal interpretado. Disseram-me que geralmente não, mas algumas mulheres podem se sentir ofendidas, por causa da idéia de absoluta igualdade entre os sexos que reina por aqui. Corro o risco de ser considerado machista. Até agora não aconteceu, ao menos explicitamente.
Quando os professores suecos estiveram no Brasil, evitávamos falar português na frente deles. Quem sabia falar inglês, mesmo que pouco, tentava se comunicar nessa língua com os outros brasileiros presentes. Falar português junto a um estrangeiro parecia uma falta de respeito, deixaria o outro por fora, deslocado. Pois bem, por aqui não há a mínima preocupação com isso. Se estamos numa roda de pessoas, eles falam sueco entre si, usando o inglês apenas quando se dirigem a mim. Ou seja, em geral não entendo nada do que dizem à minha volta. De vez em quando, pego o assunto pelo contexto e pelo tom, mas é só. Não incomoda, pois é bem claro que não se trata de falta de educação, mas de um hábito local.
Hoje o professor Geza, sua mulher Caroline e os dois filhos gêmeos de 10 meses, me levaram para ver a Cidade Velha, tombada pela UNESCO, patrimônio da humanidade. O conjunto arquitetônico é bem interessante, mais do que bonito.
sábado, 17 de abril de 2010
Brasil para suecos
Tenho conversado com muita gente, professores da universidade, amigos do Geza e da Caroline (meus anfitriões) e outras pessoas com quem vou travando contato. Nada sabem do Brasil. Um deles, ao saber que eu era de uma cidade de praia, perguntou se era a “Cubana”. Ele queria dizer Copacabana. Houve, no entanto, uma exceção. No primeiro dia em que estive aqui fui passear junto ao mar gelado, que eu nunca tinha visto. Havia por ali um homem com uma câmara filmadora profissional, tomando imagens do lugar. Puxei conversa, perguntando alguma coisa boba, para testar se os nórdicos são mesmo frios, como se diz. O sujeito me recebeu muito bem. Durante o papo ficou sabendo que eu era brasileiro. Disse que o pai dele importava café do Brasil e me mostrou o armazém onde ele estocava a mercadoria, visível dali de onde estávamos. O prédio, hoje, é uma pizzaria. Contou que, aos 80 anos, o pai dele disse que a vida inteira teve comercio conosco, mas não conhecia o país. Foram então, pai e filho, ao Brasil. Conheceram o Rio de Janeiro e São Paulo. Não sei em que ano viajaram, mas creio que na década de 80.
Bem, voltando ao desconhecimento do Brasil, imaginem vocês se eles sabem onde é Santos. Não têm a menor idéia. Digo então que é o maior porto do Hemisfério Sul, o que os deixa espantados. A seguir conto que temos o maior jardim de praia do mundo, informação constante no Guiness. Novo espanto. Emendo com Santos Futebol Clube, onde Pelé fez sua carreira. Aí a coisa soa mais familiar. Hoje jantei com um americano que viu o Pelé jogar no Cosmos de Nova Iorque, mas não o associava com o Santos.
Nas tantas trocas de idéias com tanta gente, vamos comparando população, área, renda, dados geográficos e econômicos. (A Suécia tem 9,1 milhões de habitantes, praticamente a população da cidade de São Paulo.) Falo dos problemas do país, o quanto andamos nos últimos anos – o decréscimo da população favelada, em termos percentuais, o programa Bolsa Família, a polêmica questão das cotas, o enfrentamento exemplar da questão da AIDS, a ascensão de uma parte da população pobre para a classe média, coisas do tipo. Claro que tento perceber se as informações interessam, mas é difícil saber o quanto, pois as pessoas são educadas e sabem ouvir.
Não conheci ninguém que tivesse alguma idéia da música brasileira. Algumas das senhoras soroptimistas, no jantar em que me apresentei, ouviram falar do termo “Bossa Nova”. Toquei “Garota de Ipanema”, perguntei se conheciam, Algumas balançaram a cabeça, sinalizando um “sim” não muito firme. Hoje toquei novamente, no restaurante onde fomos jantar. O americano que estava conosco, professor da universidade, nada sabia da nossa música. Quando eu disse que o Sinatra gravou um LP com o Tom Jobim, ficou surpreso.
Enfim, tenho tentado apresentar o país. Como disse um sueco, para eles o Brasil “é um lugar muito distante”.
domingo, 18 de abril de 2010
O Brasil também é aqui
Conto este caso um pouco atrasado, pois não sabia (e ainda não sei) o tom adequado para o texto. Mas vamos lá.
No primeiro dia em que fui à universidade, meu computador não ligava. Lembrei-me de que teria de pedir um login e uma senha para o Geza. Passei um SMS, ele saiu de uma aula para me levar, num papel, os números e as palavras mágicas. Ok, digitei umas três ou quatro vezes minha entrada no sistema da LTU (Luleå Tekniska Universitet), e nada. (Meu login é visitor007, vejam só.) A mensagem da tela dizia que eu não podia entrar na rede. Meu anfitrião já havia saído para continuar suas atividades.
Divido a sala com a Verônica, uma jornalista. Cada um tem seu computador, somos separados por um biombo. Chamei-a, ela viu o que acontecia e tentou ligar duas ou três vezes para o Help Desk, a seção de ajuda para problemas com informática. O telefone estava sempre ocupado. Prontificou-se a ir comigo a esse departamento, que fica em outro prédio. Lá fomos nós, ela andando depressa na frente, eu quase correndo atrás.
Aqui uma explicação é necessária. Os prédios são aquecidos, como seria de se esperar. Cada vez que você entra num deles tem de tirar gorro, cachecol, casaco. E cada vez que sai faz a operação inversa. Peço que lembrem dessa operação sempre que eu falar “fui ao Help Desk”.
Depois de teclar um monte e fazer alguns acessos a rede, o técnico nos informou que o computador “deveria estar funcionando”. Informei o número da sala em que estava, mas isso de nada adianta, disse-me ele, é preciso saber o nome do computador. Explicou-me como se fazia isso. Voltei, vi o nome (três letras seguidas de números), tentei ligar para o meu salvador. Ocupado. Retornei ao Help Desk. Já era outro técnico quem estava lá. Expliquei tudo novamente. Ele teclou, teclou, teclou. “Deve estar tudo bem, agora”, informou. Voltei à minha sala. Não estava tudo bem. Para dar um tempo, resolvi almoçar, pois já estava naquele vai-e-vem há uma hora e meia. No caminho para o restaurante encontrei uma professora, outra Anita, e relatei o caso. Ela me disse: “This is Sweden”, como qualquer brasileiro diria “Esse é o Brasil”. Eu não esperava por essa. Talvez digam o mesmo no Cazaquistão, sei lá.
Prosseguindo. Almocei e voltei ao Help Desk, que por sorte fica no mesmo prédio do restaurante. O rapaz – outro – disse que o problema provavelmente estava na tomada. Eu deveria, então, voltar à sala e anotar o número da tomada, para que as providências necessárias fossem tomadas, desculpem-me o trocadilho involuntário. Lá fui eu. A essa altura uma série de pessoas já sabia o que estava acontecendo. Fui parado por outra professora, Barbra, chefe de alguma coisa: “Pode ficar sossegado, não precisa mais ir ao Help Desk, já solicitei alguém para ir à sua sala resolver a questão”. Agradeci, mas, por via das dúvidas, anotei o número da tomada e… voltei ao Help Desk. O técnico, já nem sei qual era, teclou, teclou, teclou e disse que, na verdade, alguma coisa estava mesmo acontecendo de errado. Falou-me da solicitação da professora Barbra, disse para eu esperar um técnico. Perguntei quando esse santo homem iria me socorrer. “Não sei dizer”, respondeu-me o atendente. A esta altura já eram duas da tarde. Perguntei: “Se eu for para casa agora, amanhã de manhã o problema estará resolvido?” “Talvez”, foi a resposta. Eu já estava começando a ficar exasperado. Voltei disposto a uma coisa que até então evitara: mexer no computador e nos fios. Não queria arriscar fazer isso num país estrangeiro e numa universidade onde eu sou convidado. Se desse algum problema ia ficar muito chato.
Apesar de tudo, entrei na sala, respirei fundo e arrastei a máquina. O fio da internet estava desligado da parte traseira da CPU. Coloquei o plug no lugar e passei a acessar a internet sem problemas.
Juro que é verdade. Esse é o mundo.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Primeira aula
Hoje dei minha primeira aula na Suécia. Foi também a primeira vez que fiz uma palestra em inglês. Mas quero fazer, antes do relato, alguns esclarecimentos.
Este programa de intercâmbio é bem estranho. Primeiro os professores chegam nas cidades, tanto aí como aqui, e depois vai-se “arranjando” atividades para eles. Há quatro dias pediram-me para falar numa turma de arquitetura sobre a vida nas favelas.
Imaginem vocês. As minhas experiências com favelas são poucas. Em épocas de campanha política já andei bastante por Santos e São Vicente, em bairros muito pobres. O contato mais prolongado que tive com a população desfavorecida foi no saudoso Bar da Pedreira, onde, durante anos, eu ia tocar numa roda de choro e samba. Ficava para os lados da Rodovia dos Imigrantes, em São Vicente, onde conheci tipos notáveis. Mas isso já faz algum tempo.
Na Clínica Psicológica da UNISANTOS há anos atendemos pessoas que moram em lugares muito pobres, como cortiços e favelas. Munido dessas experiências, além de um bom tempo navegando por textos e imagens na internet, fiz um sideshow no Power Point e lá fui eu.
Pontualmente, às 13h, estavam todos na classe. Eram uns 10 a 15 suecos, uma coreana e uma polonesa. Comecei mostrando o Brasil, os estados, as cidades principais e cheguei a Santos. Mostrei as praias, o porto, o Museu do Café, enfim, escolhi algumas coisas bonitas da cidade, para não pensarem que vivemos todos em favelas. O tempo todo disse que população favelada decresceu de 36% para 24% nos últimos 10 anos, embora os dados desses levantamentos sejam conflitantes, pois é difícil definir com exatidão o que vem a ser uma “casa de favela” (por exemplo, cortiço é favela?).
Dividi os tipos de moradia em favelas, cortiços e palafitas, mostrei imagens de cada um. Claro que é uma categorização entre outras possíveis. Falei um pouco dos casos que atendemos, das questões ligadas ao alcoolismo e à criminalidade, pois estes assuntos gosto de estudar e deles tenho algum conhecimento.
Depois disso fui falando um pouco dos trabalhos sociais, desde o Bolsa Família até o Minha Casa Minha Vida, o trabalho de ONGs, de voluntários, falei dos trabalhos de extensão da UNISANTOS, etc. Daí passei à música. Peguei dois clipes de rodas de samba e projetei, mostrando a alegria das pessoas, afinal nem tudo é desgraça, eu estava preocupado em deixar isso bem claro. Aproveitei para dizer que o samba também pode ser intimista, deixei na tela um clipe de voz e violão, onde se toca “Eu sou Samba”, do Zé Kéti. Por coincidência, a Regina cantava e eu era o violonista. Foi a única vez em que vi uma reação mais perceptível nos alunos, eles sorriram. Vamos a isto.
É impressionante o silêncio da sala, durante a fala de um professor. Assim como as senhoras soroptimistas, de quem falei em outra postagem, os alunos ficam sem dar um pio. Brinquei, solicitei que fizessem perguntas, falei que nós, brasileiros, somos muito barulhentos e falantes. Timidamente alguns foram se manifestando, um por vez, educadamente. (Nunca pensei que fosse sentir falta da bagunça dos meus alunos… mas isto NÃO é um pretexto para continuarem a algazarra quando eu voltar, ok?)
As poucas notícias que têm do Brasil são sempre trágicas. As perguntas giraram em torno disto e da minha exposição. Uma aluna viu o “Tropa de Elite”, outro viu o “Cidade de Deus”, perguntaram-me também sobre um incêndio numa favela, visto na televisão. É isso que exportamos, agora já nem sei se é válido ou não. Difícil avaliar.
O problema do excesso de silêncio, digamos assim, é a falta de feed-back. Não tenho idéia se adoraram, detestaram ou se não fiz a menor diferença. No final bateram palmas contidas
terça-feira, 20 de abril de 2010
O Frio
Texto escrito na segunda-feira.
No domingo à noite fui a uma loja de conveniência, num posto de gasolina a menos de 100 metros do apartamento, para comprar chocolate. Eram uma 8 horas da noite, não sei qual era a temperatura, possivelmente uns 2 graus. No meio do caminho senti um frio tremendo, um tremor incontrolável. A sensação é horrível, parece que não vai ter jeito, dá vontade de parar e desistir, chamar a mãe, chorar, por aí. Vem uma idéia de morte. É sério. Já senti isso duas outras vezes na vida. Uma delas foi na Ilha do Cardoso, no litoral, entre São Paulo e Paraná. Eu voltava, com outras pessoas, de um passeio. Estávamos na praia, de bermudas e camiseta. De repente bateu um vento frio, vindo do sul, e começou a chover. Lembro-me bem do tremor, a vontade era de parar e se encolher no chão, mas é claro que a razão falou mais forte e cheguei à pousada. A outra vez aconteceu em Campinas, mas foi menos intensa.
Desta vez, aqui em Lulea, eu não sabia se voltava para o apartamento ou continuava, mas, como estava mais perto da loja de conveniência, apertei o passo e cheguei lá. O tremor, eu já sabia pela experiência da ilha, custa a passar. Permanece um incômodo muito desagradável por umas duas horas. Comprei o chocolate sei lá de que jeito, não sei se a vendedora percebeu que eu estava mal, fiquei um pouco no calor da loja e resolvi voltar para casa. Vim quase correndo, cheguei me sentindo péssimo. Nem tirei a roupa quente, esperei a temperatura do corpo subir. Aos poucos fui voltando ao normal, mas o desconforto ficou rondando até bem depois de eu fechar a porta.
Tive receio de tudo acontecer de novo, em outros dias. Na segunda, já refeito do susto, tentei entender melhor como as coisas funcionam neste clima. Conversei com o Geza e com outra professora. Entendi que devo me paramentar todo – casaco, gorro, luva, cachecol – dentro do prédio, deixar o corpo esquentar a roupa e depois sair à rua. Mas não é recomendável demorar muito tempo no ambiente aquecido, pois o calor se torna insuportável, quando se está vestido a rigor, ou melhor, ao rigor da neve. Há de se ter o timing. E, uma vez na rua, é preciso andar depressa. Testei há pouco esta teoria, para não sucumbir ao medo de ficar congelado. Funcionou. Estou entendendo por que os suecos são velozes. É verdade que hoje, segunda-feira, a temperatura estava em 4 ou 5ºC. Talvez eu tenha um limite em torno de 3ºC. Vou verificar, um dia desses. Mas não agora.
A não-viagem da Regina
Infelizmente, por causa do vulcão islandês, a Regina não veio me encontrar aqui em Lulea, como estava programado. Havia aeroportos fechados e o risco de ficar presa em Fankfurt. Péssima notícia.
Pensei em processar o governo da Islandia por danos morais a um professor brasileiro sexagenário. Os advogados consultados não me estimularam a prosseguir com essa idéia.
Faço piada para afastar a tristeza.
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Segunda aula
Hoje dei a segunda aula, vocês podem imaginar com que espírito e com que esforço. Era uma apresentação para estudantes interessados em intercâmbio internacional. Havia uns 12 alunos. Primeiro falou a coordenadora do curso, uns 40 minutos, em sueco. No final aplaudiram, fiz a mesma coisa, sem ter entendido nada. Depois duas alunas falaram por outros 40 minutos, esse pessoal teima em falar a língua deles. Bati palmas junto com a platéia. Aí foi a minha vez. Classifico meu desempenho como médio. Precisei me concentrar, estava com a cabeça em outras paragens. A seguir falou uma professora sul-africana, Nirmala, de Durban, gente finíssima, que eu já havia conhecido. Teve o bom senso de falar em inglês e foi muito bem. A universidade de Durban é impressionante, tem recursos, pesquisa em tecnologia, é grande e muito bonita. Fica numa montanha, com vista para o mar. Desta vez aplaudi com consciência.
Há uma foto minha mostrando a cidade. Estou com a mão no bolso. Que ruim!
quinta-feira, 22 de abril de 2010
O Inglês
Algumas pessoas têm perguntado sobre o inglês – como estou me virando, se dá pro gasto, etc. A resposta não é tão simples como um “sim” ou um “não.
Primeiro vamos ao entender (listening). Em Lulea há inglês para todos os gostos, mil pronúncias diferentes. Converso muito bem meus com anfitriões suecos Geza e Anita. Com eles não há problema algum. Se não entendo umas poucas palavras, tenho a liberdade de perguntar, e assim vou aprendendo. O marido da Anita, Jorgen, é claríssimo; a Caroline, mulher do Geza, já não é tão cristalina, fala baixo, mas dá pra conversar.
Há situações bem mais complicadas. Logo nos primeiros dias fui apresentado a um professor muito simpático, em torno de uns 55 anos, Dr. Hakan. Acontece que o homem fala de boca fechada e sem muito volume. Ele foi bastante amável, perguntou de onde eu era (essa até entendi), depois contou coisas da Suécia e da universidade (entendi metade). A conversa se prolongou um tanto – ele, o Geza e eu de pé no corredor. Chegou uma hora que eu não sabia do que se falava, mas tentei armar uma expressão agradável, sorrindo com se entendesse tudo. Enfim ele se despediu, tinha coisas a fazer. Conversamos mais duas vezes. Na terceira, no restaurante de universidade, já consegui decifrar as frases. Puxei então o assunto sobre os tantos “ingleses” que eu estava ouvindo. Para meu grande alívio ele relatou experiências muito semelhantes, até em encontros científicos internacionais. Em alguns, contou-me, era mesmo difícil saber de que assunto se estava falando. Outro professor presente passou por momentos semelhantes. O Dr. Hakan disse que língua oficial dos congressos é bad english. Achei ótimo.
Muitas aulas são dadas em inglês, como já escrevi em outras postagens, por causa dos alunos estrangeiros. Os professores contaram também casos de alunos cuja fala é ininteligível. Alguns destes jovens têm o inglês como idioma do país de origem.
Um dia desses almoçamos com um casal, ele sueco e ela finlandesa. Conversei com o marido sem problemas. A mulher se dirigiu a mim duas ou três vezes. Em todas pedi para repetir o que tinha dito. Mesmo assim não entendi muita coisa. Estou ficando bem treinado no tal sorriso.
Jantamos no final de semana com um professor americano do Tenesse, totalmente incompreensível. Ele foi ouvir minha primeira aula e no final veio trocar idéias comigo. Conversa vai, conversa vem, perguntou-me seu conhecia um autor brasileiro de nome X. Ele falava e eu não sabia quem era. Pegou um papel e escreveu: “Paolo Freire”. Ah! Conheço.
Está aqui uma professora da África do Sul, Nrmala, com o marido Ivan. Inicialmente era estranho (para mim, e claro!) o jeito como ela pronunciava o inglês, sua língua materna. Até mesmo a palavra violence foi incompreensível, da primeira vez que a ouvi (a professora é criminologista). Já o marido era perfeitamente compreensível. Conversei com eles sobre isso; disseram-me que vinham de duas províncias diferentes. Tive mais dois contatos com o Ivan. Conversamos bastante na última vez, quando notei um fenômeno que tem me acontecido: há momentos em que nem me lembro que estou falando inglês, mas chega uma hora em que não consigo mais prestar toda a atenção necessária para manter a conversa. Preciso descobrir esse timing para sair de cena antes da fadiga.
Agora a questão do falar. Levo sempre comigo um dicionário. Se sei antecipadamente que vou conversar ou fazer uma exposição sobre algum assunto cujo vocabulário não me é familiar, faço antes uma lista das palavras a serem usadas. Às vezes tenho duvidas a respeito das preposições e das regências verbais, mas sei que sou entendido. Como na escuta, se tenho dúvidas não hesito em perguntar aos mais próximos. Segundo meu falecido pai, muita gente fala “inglês de nóis vai nóis fica”. É o tal bad english em versão familiar. O filho dele, o menos em certos assuntos, com certeza se expressa nessa língua.
É mais difícil entender e se fazer entender ao telefone. Frente a frente, os gestos e as expressões faciais ajudam muito. Um tanto de Shakespeare e outro tanto de macacos, a comunicação sempre é possível. De um jeito ou de outro, todos se entendem, nesta Babel monoglota.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Calor humano
Quando descrevi a maneira com que as pessoas daqui me ouviram tocar ou dar aulas, brinquei bastante com o jeito deles. É mesmo muito diferente do nosso. Por via dessas postagens do blog, recebi e-mails e comentários sugerindo que nós, brasileiros, temos mais calor humano que os suecos. Em termos. Quando todo um modo de ser é diferente, não é possível tirar conclusões apressadas de um tópico isolado. Se meu jeito jocoso de redigir sugeriu isso, peço duplas desculpas – aos leitores brasileiros e aos suecos.
O pessoal daqui tem uma solicitude comparável à nossa. Sempre se colocam à disposição, perguntam se está tudo bem, se preciso de alguma coisa. Os que souberam da confusão vulcânica que foi a não-vinda da Regina, sempre tocaram no assunto, interessados e compungidos pelo rumo adverso das tratativas.
(Sei que escrevi “jocoso”, “solicitude” “compungidos” e “tratativa”. Tenho meus dias de archaismos. Desculpem-me.)
Há comportamentos que julgaríamos inadequados, como o fato de andarem sempre depressa, na frente de quem os acompanha, sem esperar pelo outro. Além disso, passam entre duas pessoas que estão conversando sem pedir licença, se este for o seu caminho. Ontem uma moça usava seu laptop na mesa do corredor. O fio da fonte estava ligado numa tomada na parede do lado oposto, atrapalhando a passagem. Fiquei observando a cena. Os professores que andaram por aquele trecho desviaram-se do fio (para isso precisavam se abaixar), mas ninguém pediu para a menina desconectar o computador. Tudo isso nos parece falta de educação, desconsideração pelos outros.
Mas há outros lados da questão. É verdade que parecem todos apressados, numa cidade pacata, de 37.000 habitantes na área urbana, onde você anda sempre sentado em ônibus pontualíssimos. Mas, quando seguro as portas das salas para alguém passar, apesar de meio surpresos, nunca deixam de agradecer.
É preciso dizer que há muitas portas em todo lugar, pois tem de haver isolamento térmico em cada ambiente. Não sei como seria o cotidiano se todo mundo se preocupasse em segurá-las. Uma nota curiosa é que as portas, também por motivos térmicos (penso eu) abrem-se no sentido contrário ao que estamos acostumados. Agora sei que “drag” significa puxar e “tryck” quer dizer empurrar. Mas voltemos ao tal do calor humano, inseparável da educação e do respeito pelo outro.
Quando pedi a alguém para me mostrar o caminho para outras divisões da universidade, como restaurante, sala de café, help desk, etc, quase todas as pessoas me acompanharam até os lugares. (Antes que alguém pergunte, desde o começo eu sabia onde era o banheiro.) Nas ruas, todas as minhas perguntas foram respondidas com a informação correta, acompanhada de um sorriso. Os atendentes das lojas são educadíssimos.
Os casais não fazem demonstrações de “agarro” em público, na rua ou na universidade. Andam de mãos dadas, vejo-os rindo e brincando, mas sem jogos eróticos escancarados.
As pessoas deixam os sapatos na entrada das casas, para não sujar os soalhos e tapetes com a poeira das ruas. Esta é uma sociedade igualitária, onde não há empregadas domésticas para limpar o chão a toda hora. Ao contrário do que se pensa, muitos suecos são piadistas (inclusive o Dr. Hökan, cujo inglês já estou até entendendo) e efusivos. Se não tocam tanto no corpo do outro como nós, não deixam de dar um abraço e os famosos tapinhas nas costas – mesmo em mim, recém-chegado.
Na rua principal da cidade, onde está instalada a webcam (ver primeira postagem), há mais sol, por causa da largura da via. As mães costumam passear ali com seus bebês, em carrinhos. As amigas param e brincam com as crianças, como estamos acostumados a ver. Já acenei para um desses bebês. Ele sorriu, a mãe também.
No restaurante da universidade sempre me junto aos professores e temos bons papos. Hoje um deles veio à minha sala e convidou-me para almoçar. Eram 11:10, eu havia tomado café às 8:00 e estava no meio de um trabalho. Tive recusar a companhia.
Depois de comer todos pegam suas bandejas, professores ou alunos, e vão para um corredor. Depositam a comida que sobrou e os utensílios numa espécie de balcão: guardanapos num cesto (coisas combustíveis), restos de comida em outro (composto), talheres numa esteira apropriada, pratos, copos e a própria bandeja em seus lugares. A Suécia é a campeã mundial de reciclagem de lixo. Aqui de recicla mais de 90% dos resíduos domésticos. Isso é cuidado com o meio ambiente, mas também respeito com quem trabalha. Ah, sim: um funcionário da limpeza ganha R$ 4000,00. O custo de vida, nesta região, não é muito diferente do brasileiro. Dá para viver uma vida digna, embora sem luxos.
Hoje fui convidado para uma festa do departamento, às 19:00, na casa de um professor. Ele veio à minha sala para explicar como posso chegar lá. Trouxe um mapa. Perguntei até que horas costumam se prolongar esses encontros da sexta-feira. Até a meia-noite, no máximo, responderam. Baladaço. Alguém me pediu para levar o violão. Depois eu conto.
sábado, 24 de abril de 2010
Costumes, equívocos, preconceitos
Este caso aconteceu no segundo dia em que estive aqui. A Anita veio até meu apartamento e achou-o empoeirado. Disse que ia tomar providências, afinal eu precisava um lugar decente para ficar. Deve ter se comunicado com o Geza, pois logo em seguida ele me enviou um e-mail, dizendo que dali a dois dias, às 11 da manhã, uma firma de limpeza daria um jeito na situação. O trabalho duraria umas duas horas. O melhor a fazer seria eu entregar a chave, dar uma volta e retornar depois desse tempo.
Às 10:55, na data combinada, sentei-me no banco do saguão do prédio. Às 11:05 ninguém tinha aparecido. Um rapaz, num carro vermelho, esperava alguém na calçada oposta. Eu podia vê-lo pelo vidro da porta.
A pessoa que o rapaz esperava não aparecia. Às vezes ele olhava para a porta e me via. Eu constantemente olhava para fora e o encarava. A situação era meio constrangedora.
Saí para examinar os arredores (Coloquei casaco, gorro, cachecol e luvas). O menino veio até mim e perguntou se eu era o Mr. Ulf. Não, não era. Ele voltou para o carro e eu para o saguão (tirei casaco, etc.). Às 11:10, sabendo da pontualidade dos suecos, enviei um SMS para o Geza. Ele retornou a mensagem, escrevendo que iria ligar para a firma. Dali a pouco ligou para o meu celular, dizendo que o carro da firma estava em frente ao prédio, esperando por mim
Todos já devem estar inferindo a seqüência dos acontecimentos. Fui novamente até a rua (casaco,etc.) e perguntei ao rapaz no carro vermelho se ele era o encarregado da limpeza. Era. Não me lembrei que Mr. Ulf é o proprietário do imóvel, a pessoa de quem foi alugado este meu canto. O nome está numa tabuleta que fica do lado de fora do prédio e serve para identificar os moradores. Deram ao responsável pela limpeza apenas o endereço, ele leu a tal tabuleta e armou-se a confusão. Demos muita risada com o acontecido. Um aspirador foi tirado do porta-malas, além de uma vassoura, pá de lixo e outros instrumentos para o trabalho. Mostrei-lhe o apartamento. Quando viu o violão disse que também tocava, gosta de Bob Dylan. Batemos um papo rápido, saí e tudo seguiu seu curso.
Esta história vai além da crônica. Serve para ilustrar os preconceitos que temos (ou tenho?) sem perceber. Talvez esteja sendo severo demais; posso tratar do assunto como… expectativas culturais, digamos. Eu esperava uma firma de limpeza, não é mesmo? Pois na minha cabeça isso está associado a uma Kombi meio velha, ou uma picape empoeirada cheia de vassouras na caçamba, quem sabe até uma Brasília. Esse carro deixaria no apartamento uma mulher de uns 30 a 40 anos, com jeito modesto, o estereótipo do que julgo (ou julgamos?) uma faxineira. Jamais poderia esperar um rapaz dirigindo um carro vermelho, que não era novo, mas estava longe de ser uma lata velha. O menino poderia ser amigo dos meus filhos, a julgar pelo aspecto e pela educação (olha o preconceito novamente….). Vestido como um jovem de sua idade, falou inglês comigo numa boa e tratou do serviço. Perguntei quanto ele cobrava, devia ser um estudante fazendo bicos. Pensei em contratá-lo para uma outra vez, se necessário. Disse-me que não sabia o preço e me deu um cartão da firma. Era empregado.
Depois eu soube: aqui não há trabalho informal. As pessoas são registradas e o salário é decente. O refrão de um samba do Paulinho da Viola invade constantemente a minha cabeça: “As coisas estão no mundo e eu preciso aprender, as coisas estão no mundo e eu preciso aprender.” Assim mesmo, repetido.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Terceria aula
Pediram-me para falar sobre a percepção da violência no Brasil. Na Psicologia deles, muito diferente da nossa, há um grupo que trata do assunto, relacionado especialmente com a violência no trânsito. Eles pesquisam o fenômeno na Suécia, é claro.
Alguns dados para os não familiarizados com o problema, para ver a enrascada em que me meteram. Uma das medidas mais aceitas de violência é número de assassinatos por cada 100000 habitantes por ano. A média mundial é de 8,8, a média sueca fica entre 1 e 2. O No Brasil o índice bate em 25,2. Há regiões brasileiras, como Alagoas, onde a coisa é muito pior. É mole? Centrei os dados em Santos, onde temos um número em torno de 10 a 11. Na Baixada Santista o bicho pega mais, mas não vou ficar aborrecendo vocês agora com estes dados, mas com outros. Pediram-me para dizer algo sobre o trânsito. Vamos lá. Um índice bastante eloqüente mede o número de mortos em acidentes por cada 100000 carros. Nós 105, eles 9. Ganhamos. Ou melhor, perdemos.
Agora imaginem discorrer sobre essas barbaridades sem denegrir a imagem do país. Comecei dizendo que, apesar de serem essas as estatísticas aceitas como parâmetro, temos de fazer algumas contas simples e ler a estatística pelo avesso. Se morrem 25,2 pessoas assassinadas em cada 100000, pode-se dizer também que sobrevivem 99974,8 indivíduos. Não é pouco. Podemos questionar os índices e o que significam; mesmo o famoso Produto Nacional Bruto tem sido posto em dúvida como medida para auferir a qualidade de um país.
Cada vez que faço essas apresentações mostro as praias, o porto, o Museu do Café, repito sempre a mesma história: temos o maior jardim de praia do mundo, o maior porto do Hemisfério Sul, em Santos jogou o Pelé. Digo que estou ali para abordar o pior lado de uma sociedade, que é um complexo de milhares de aspectos e variáveis. Isolar uma categoria de eventos distorce a idéia do todo. Hoje contei um pouco da ditadura, das trapalhadas dos presidentes imediatamente posteriores (que apresentei como um reaprendizado da democracia) e os avanços dos últimos 12 anos, com os primeiros governos mais organizados. Como vêem, não deixei de fora o FHC nem o Lula.
O inglês complica nas horas mais incríveis. Fui falar a respeito do plebiscito sobre o desarmamento. Lembrei-me de “referendum”, a palavra para plebiscito, mas não havia jeito de vir a outra, “disarmament”, coisa mais óbvia. Expliquei (mal) por vias transversas, mas deu para entender (acho). Voltemos ao tema principal.
Mais difícil, posso dizer penoso, foi apresentar os dados de assassinatos referentes aos jovens de 15 a 24 anos, também um índice valorizado nas pesquisas e publicações. Este assusta. Se alguém quiser, posso mandar as tabelas. Estamos sempre entre as 5 piores classificações entre os países do mundo em que os meninos – pois são homens, na imensa maioria – morrem por homicídios. É triste. Abordei o inabordável por vias históricas e culturais, tentando explicar o quase inexplicável. Estou mesmo achando que somos bons em dar o tal nó em pingo d’água.
Encerrei dando um depoimento pessoal. Ia mesmo fazer isso, quando me pediram para falar sobre a minha percepção da violência. Falei do meu cotidiano, de andar na praia, sair a pé. Contei dos 3 assaltos que sofri, dois à mão armada, dizendo que o comportamento perante o assaltante determina muita coisa. Expliquei as orientações dos órgãos de segurança. Afinal, ali estava eu, vivo aos 64 anos, a falar com eles. Contei dos dois carros roubados, fiz piada. No dia de meu aniversario de 40 anos levaram-me um carro. Quando fiz 60 anos assaltaram-me. Preciso me precaver para os 80. Uma complicação a cada 20 anos não é muito. Pasmem: ele riram!
Enfim acabou. Saí de lá com o Teddy, um estudante de 29 anos, culto e bem falante. Fomos almoçar no restaurante da faculdade, onde conversamos bastante. Perguntei se havia conseguido passar a imagem de uma sociedade brasileira complexa, com problemas, procurando seu rumo, mas não negativa. Disse-me que sim. Acreditei. A outra opção doeria muito.
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Cachecol
No início da primavera, em Lulea, todo mundo usa gorro de lã e quase todas as pessoas andam de cachecol. Eu trouxe três deles, dois feitos pela minha mãe. A D. Miú, que muitos leitores deste blog conheceram, faleceu em 2002, aos 93 anos de idade, perfeitamente lúcida. Há muito não fazia tricô.
Os trabalhos dela estão aqui nestas lonjuras, protegendo o pescoço do filho dos ventos suecos. Um deles é notável, pode der visto nas fotos, pendurado no cabide e no meu pescoço. Um gorro de lã é prolongado e se torna também um cachecol. Ou vice-versa.
Várias pessoas notaram a peça e fizeram perguntas. Quando ficam sabendo que tem mais de 20 anos, espantam-se. “Deve ter muito valor afetivo para você”, disse uma moça, aparentemente escandalizada por eu usar uma coisa tão velha.
Na semana passada fui a uma loja de produtos eletrônicos perguntar o preço de um Ipod para meu filho. Voltei lá uma outra vez, dali a uns dois ou três dias, para ver o preço dos notebooks. Quando eu já ia saindo, o vendedor me disse: “Você já esteve aqui. Sei por causa disso”, apontando o cachecol.
Uma brasileira que conheci, casada com um sueco, achou-o “interessante”. Essa é uma palavra que serve a diversos propósitos, mas a expressão era positiva. A garçonete de um restaurante onde janto vez ou outra também ficou olhando e comentou. Na universidade uma professora me perguntou a origem do acessório. D.Miú, se estivesse viva e em forma, poderia descolar uma grana exportando suas habilidades para a Suécia.
Não sei como professores e alunos receberam minhas aulas. Desconheço se fiz alguma diferença. Na memória de alguns ficarei marcado como “aquele estrangeiro do cachecol com gorro”. Já é alguma coisa. Thanks, mom!
terça-feira, 27 de abril de 2010
Apartamento em Lulea
Visita guiada ao meu apartamento. Clique em:
Apartamento do Cancello em Lulea
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Costumes, equívocos, preconceitos
Os suecos não ficam andando a esmo pelas ruas, como gostamos de fazer, vendo a vida passar. Sempre apressados, vão de um lugar a outro, pouco param. Está frio, talvez façam isso no verão. Nos dia de sol mais forte formam-se algumas rodinhas, três ou quatro pessoas de frente para a luz. “The sunny side of the street” começa a tocar na minha cabeça.
É fascinante prestar atenção no movimento das pessoas. Muitos pontos se destacam. Falarei de um deles.
Vejo poucos casais de mãos dadas e uma só vez vi um carinho em público: Uma adolescente de uns 16 anos deu um beijo no rosto do namorado, no ônibus. Mais nada. Fiquei curioso. Como eles paqueram? Quais os códigos para se aproximar de outra pessoa?
Conversei sobre o assunto com um casal de imigrantes beirando os 35 anos e com dois estudantes, ela com uns 30 e ele 29. Hoje falei com uma professora veterana, lá pela sexta década de vida. As respostas foram convergentes. Que ninguém interprete isto como investigação científica ou verdade última; trata-se apenas de bibsbilhotice latino-americana.
Os quatro primeiros informantes disseram-me que as discotecas e o álcool têm um papel muito importante na paquera. Dá-se por suposto que as pessoas vão esquecer tudo o que fizeram enquanto estiveram bêbadas. Todos sabem que é mentira, mas conveniente enquanto crença. Nas discotecas, com os futuros parceiros levemente ou muito embriagados, vale o tipo de aproximação que conhecemos.
Perguntei se um homem poderia se aproximar de uma mulher na rua ou no ônibus e dizer: “Menina, achei você muito legal (ou bonita, ou gostosa, como queiram). Vamos bater um papo?” Nem pensar, responderam-me. Essa abordagem seria encarada como ofensa. Não é por aí que a coisa funciona.
O rapaz e moça com quem conversei disseram que se valoriza as aproximações discretas. Digamos que um amigo lhe apresenta uma amiga. Com jeito, você pode convidá-la para tomar um café. No início tem de parecer amizade. Eu quis saber se isso também se aplica às moças, ou seja, se podem tomar a iniciativa. É mais raro, mas tomam.
Já de posse de alguns dados, observei um pouco mais os comportamentos dos jovens. Um dia eu estava no ônibus, indo para a universidade, quando sentou-se perto de mim uma menina muito bonita. Nos sucessivos pontos entraram vários rapazes. Nenhum deles deu uma olhada para ela, aquela “medida” básica. Todos olhavam para frente, do jeito meio apressado de sempre, sem desviar o rosto para a garota. Do ângulo em que eu estava não podia ver se ela encarava alguns deles, mas garanto que não fez nenhum movimento de cabeça indicando uma atitude mais interessada.
Na universidade vejo alguns casais, discretíssimos, para os nossos padrões. Estão juntos, mão na mão, em geral rindo e brincando um com o outro, mas sem algazarra. Fica a advertência para os futuros bolsistas jovens e solteiros: Observem os códigos!
Não sei se a história de que as européias são loucas por um “latin lover” é verdadeira. Não vi sinal disso, alguma coisa apareceria ao menos nas propagandas de jornal, televisão ou outdoors. Por outro lado, conheci três suecos casados com brasileiras, todas morenas. Coincidências, talvez. Repito: relato apenas observações, não estou fazendo pesquisa. Para constar: A propaganda mais ousada que vi mostra uma mulher com um maiô duas peças. Nem chega a ser biquíni.
O curioso é que, na minha adolescência e mesmo alguns anos depois, as revistinhas de sacanagem explícita vendidas no mercado paralelo (um ou outro dono de banca sempre tinha) eram suecas. Acho que ninguém sabia se vinham mesmo da Suécia, mas essa era a crença. O país era considerado um celeiro de mulheres lindas, liberadas e do sexo livre. Não sei se isso um dia foi verdade, ou se foi mais dos tantos mitos a povoar a imaginação dos anos 60. Lá pelo meio da década os namorados começaram a ir para a cama. Em 1967 Gaiarsa publicou “A Juventude diante do Sexo”, pondo fogo na revolução. O Brasil liberou geral e as revistinhas nórdicas foram esquecidas.
Vago pelas ruas daqui e comparo. Temos um número absurdamente maior de publicações eróticas expostas nas bancas. Exportamos a nudez da Marquês de Sapucaí, tornamo-nos um destino do turismo sexual. Destino é um termo perigoso. Para o bem ou para o mal, os tempos são outros.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
O jantar de ontem
Os horários são muito diferentes do que estou acostumado, canso de repetir. Almoça-se ao meio dia, impreterivelmente. Disseram-me que, nessa hora, se um professor estiver escrevendo um artigo, a caneta cai da mão dele automaticamente. Não deve ser verdade, pois todos escrevem em computador. É possível que a máquina esteja programada para travar a essa hora, mas isto é especulação.
Janta-se às seis horas. Isso mesmo. No Brasil faço essa refeição às oito e meia.
Ontem fui convidado a jantar na casa de uma brasileira, Liana, casada com um sueco, o Lasse. Eles têm um filho, Vitor, de 9 anos, louco por futebol. Gente finíssima, receberam-me muito bem. A história de como conheci o pessoal fica para outra postagem.
Quinze minutos antes (17:45) lá estava eu, na porta do prédio deles, vindo a pé do meu apartamento, seguindo as indicações da dona da casa. Foi fácil chegar, depois de umas perguntas a uma senhora que não falava inglês, mas leu o endereço no papel que eu tinha nas mãos e apontou o caminho. O problema foi chamá-los pelo painel cheio de botões que fica junto à porta de entrada. Não entendi como se digita o código para que a campainha toque onde deveria. Gastei uma chamada de celular: “Tô aqui em frente!” Ensinaram-me a seqüencia de letra e números, entrei. Disseram-me também que apertasse o quarto andar. Como saber disso, se o apartamento era B0035?
Foi interessante ver a rotina de mais uma casa sueca. Logo no vestíbulo já se deixa todas a tralhas de agasalho – luvas, cachecol, gorro,casaco, sapato. Nesta residência, em especial (não sei se em outras) a cozinha é conjugada com a sala, sem divisórias, com muito bom gosto. As tarefas dos dois lugares vão sendo feitas ao mesmo tempo. Não se “faz sala”. Ninguém vai buscar uma cadeira para você sentar, ou ao menos dizer: “Sente-se, por favor.” Supõe-se que você sente. Todos vão fazendo as coisas juntos, põem a mesa, servem-se, pegam mais comida no fogão ou na geladeira quando necessário, conversam. O interessante é que não há prioridades. As visitas não são servidas antes dos outros, nem as mulheres. São educados, esperam cada um se servir, mas de fato os costumes tão nossos conhecidos não têm lugar. Deve ser a questão da igualdade. No começo estranhei, mas é um jeito bem confortável de ser, sem grandes cerimônias e cordial. No final já vão lavando a louça, enquanto fazem o café. Não há empregada doméstica, sempre é bom lembrar. Tudo tem de ser prático. Eu já havia notado esse esquema em outra casa onde estive.
O rango estava pra lá de bom. Fizeram tacos, uma comida mexicana maravilhosa. Como sobremesa, uma xícara de café e sorvete com calda de fruta. Café na xícara, sorvete na tigela, entenda-se. Não são misturados. Como os dentes agüentam a alternância do quente e do gelado, desconheço.
Essa tal fruta, pequena, só é encontrada nos pântanos. Os mais velhos têm a manha de colhê-la. Uma vez a Liana foi ver onde e como era feita a colheita. Afunda-se até os joelhos para poder chegar onde a planta cresce. Fico imaginando as pernas congeladas. A fruta é ótima, só podia ser, para valer o sacrifício.
Falamos e falamos, contamos parte das vidas, vimos fotos das famílias, do Brasil e da Suécia. O papo estava muito agradável, mas resolvi sair às 8:30 – já é tarde, pensei em sueco. Uma hora depois o casal de sul-africanos berrou “Canceloooooooooo” embaixo da janela do meu apartamento, convidando-me para ir à casa deles. Enfim, o Terceiro Mundo! Não aceitei, estava escrevendo, iria falar com a Regina pelo skype dali a pouco. Combinamos um almoço para hoje. Às 13 horas.
sábado, 1 de maio de 2010
Círculo Polar Ártico
Crônica da linha imaginária
Viajávamos, Geza e eu, rumo ao Norte da Suécia, para chegar ao Círculo Polar Ártico. Comecei a contar para ele uma história de infância. Nos últimos dias tenho lembrado muito desse caso; os motivos se tornarão óbvios.
No primário, correspondente hoje às quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, levava-se a Geografia muito a sério. Tínhamos de saber as capitais de todos os países, apontá-los em mapas sem legendas, ter na memória os países vizinhos ao Brasil. Além disso, aprendíamos as noções de localização, pontos cardeais e outros conceitos, como se verá.
Numa das aulas de Geografia Geral a professora tentou explicar a idéia de meridiano. “É uma linha imaginária unindo os pólos”, sentenciou. Lembro-me muito bem dessa frase, logo os meridianos, ora, já conhecíamos o Equador, da mesma linhagem.
A tal “linha imaginária” ficou rolando na minha cabeça. Existia mesmo algum tipo de linha? Era muito fina, a ponto de não poder ser vista? Quem a tinha esticado, tão grande assim? Se existia só na cabeça das pessoas, como a professora dizia, como iríamos saber onde ficava? Azucrinava meus pais, perguntando. Nem sei por quanto tempo foi esse um dos meus problemas existenciais – entender as misteriosas linha imaginárias, cortando a Terra pra lá e pra cá, mas onde estão, pois não as vejo? Saudades dos tempos quando essas questões preponderavam!
E agora, nestas frias lonjuras, mais de 50 anos decorridos, meto-me num carro em dia frio e chuvoso, só para ter a glória de cruzar uma… linha imaginária. Creio entendê-las melhor, nos tempos de mais idade, do Googlse Maps e do GPS, mas o fascínio perdura. Na há outra explicação para deixar o conforto do apartamento aquecido e sair neste domingo, feriado, Dia dos Trabalhadores, para alcançar o Círculo Ártico.
Fui a Europa pela primeira vez há muito anos. Naquele vôo de ida, ao passar de um Hemisfério a outro, o piloto anunciou: “Senhores passageiros, estamos cruzando a linha do Equador”. Fiquei emocionado. Era minha primeira vez. Já tinha imaginado o imaginário, agora era verdade.
Depois, pensando bem… ora, costumava cruzar o Tropico de Capricórnio. Ele passa bem perto de São Paulo, na Via Anhanguera. Fiz meus estudos universitários em Campinas, viajava por ali de ônibus. Talvez algum dia tenha me dado conta, já nem me lembro. Não atiçava a imaginação.
Ainda cruzo o Tropico de Capricórnio, na Rodovia dos Bandeirantes, meu caminho para Campinas. Faço essa viagem a cada 15 dias. De tanto romper os limites dessa outra linha imaginária, já nem a percebo. Estarei sendo injusto? Coloco lado a lado Círculo e Trópico. Comparo. Charme por charme, este último é muito mais exuberante. Imagino um sueco viajando pela primeira vez ao Brasil, fazendo pose junto à placa com os dizeres: “Aqui passa o Trópico de Capricórnio”. Vai mostrar a foto para os filhos, para os amigos, para o mundo. Colocará num blog, imagino.
quarta-feira, 5 de maio de 2010
Costumes, equívocos, preconceitos – IV
Cheguei ao Brasil ontem, mas vou continuar este blog. Ainda há casos a serem contados.
Algumas historias do casal de sul africanos, Nirmala e Ivan. Gente muito bem humorada. Ela, criminologista, era professora convidada, como eu. Ele, saxofonista e produtor musical, culto e bem informado, foi acompanhá-la e fazer turismo. Como não levou o instrumento, não pudemos tocar juntos.
O Ivan pouco se lixava para o modo de ser dos suecos. Saí com ele para passear pelas ruas umas duas ou três vezes. Se visse uma mulher bonita, não tinha dúvidas: olhava mesmo, como faz qualquer brasileiro. Eu ficava meio sem jeito, costumo observar os padrões de cultura do lugar, mas o cara não estava nem aí.
Um dia ele e a Nirmala passaram lá em casa, no final da tarde, para dar uma volta. Chamou-me da janela, “Cancelloooooo”, um desacato aos ouvidos nórdicos, já falei sobre isso. Desci. Para passear, disseram. A Nirmala sugeriu uma ida ao supermercado. Eu detesto esse programa, mas vá lá, tudo pela amizade internacional. Caminhamos, o frio estava suportável. Chegamos. Eles viam e fuçavam tudo, demorando um tempo enorme em cada setor. Quando eu já estava cansado daquele passeio chatíssimo, perguntei se já não bastava, pois a cesta (deles) estava cheia de mercadoras. Ela se declarou uma compradora compulsiva, eu declarei meu horror a fazer compras, todos riram, nessas internacionalices tudo se perdoa, amanhã a gente nem sabe se vai se ver de novo. Agüentei mais um pouco a peregrinação pelas prateleiras, vi um recipiente com castanhas de caju e disse ao Ivan: “Isto vem do Brasil”. As castanhas estavam num pote, onde, a rigor, seriam tiradas com uma caneca, colocadas num saco plástico, pesadas e pagas no caixa. Meu amigo do outro lado do Atlântico não hesitou: meteu a mão no pote, tirou uma ou duas, provou e aprovou. Fiquei mais uma vez morrendo de vergonha, olhei para os lados para ver se havia algum sueco. Não havia. A Nirmala informou, rindo: “Ele é assim mesmo”. Mas eu não sou, quase respondi. Deixei quieto, sabe como é, relações internacionais, etc.
Outra fria aconteceu num buffet. Estávamos nos servindo e eu não sabia se punha na salada molho branco ou rosé. Fiquei contemplando as tigelas, como se pelos olhos pudesse adivinhar o gosto. Comentei minha indecisão com o Ivan. Ele não teve dúvidas. Disse-me: “Experimenta, Cancello”, Pegou um pouco de cada molho com a concha, colocou as duas amostras na palma da mão e provou cada uma. Não sei se dá para imaginar o significado do ato num buffet na Casa de Cultura de uma cidade sueca. Fiquei desentendido, paralisado por uns segundos. Coloquei discretamente uma gota do molho rosé no dorso da mão e senti o gosto, certificando-me da inexistência de nativos nas cercanias. Estava bom. “É esse mesmo”, declarei, para evitar maiores tentativas e vexames.
Mas a coisa vai além. Preciso de um intermezzo para explicar a extensão do enrosco.
No clima frio e seco a pele fica muito ressecada. Eu sentia principalmente as mãos ásperas. Pela primeira vez na vida entrei numa farmácia de manipulação para comprar creme hidratante. Sei que é preconceito, ninguém precisa me dizer, mas fiquei imaginando alguns dos meus amigos mais sacanas me flagrando naquela situação. Pois bem, contei essa história os sul-africanos, eles riram um bocado. Um dia, na cidade, estávamos só o Ivan e eu. Vi a loja e mostrei-a para ele. “Vamos lá”, disse-me. Eu queria mesmo comprar um outro creme para passar no corpo, seguindo os conselhos da Regina dados pelo Skype, pois a pele, quase sem contato com o ar (a gente passa o tempo todo com camiseta de manga comprida e minhocão) fica também ressecada. Imaginem agora aqueles tais amigos me vendo entrar na farmácia com um negão, agora já entrei num duplo preconceito, encarem isto como uma história politicamente incorreta, se quiserem. Como havia muita gente (para os padrões luleanos) no estabelecimento, falei “Está cheio, não tenho paciência de esperar” e fomos embora.
Esse episódio aconteceu antes do dia do supermercado, para onde voltamos agora. No meio do périplo interminável por gôndolas e corredores, peguei o celular e resolvi tirar uma foto do casal. O Ivan gritou um “Espera aí!”, foi até uma prateleira onde ficavam os cosméticos (estávamos perto, para meu azar), pegou um pote e fez pose de quem está hidratando o rosto. Cliquei-o, o resultado vai aí embaixo. Não sei se o meu companheiro africano chegou a abrir o tubo e passar de fato o creme. Como todos podem ver, a mulher dele ficava rindo, numa boa. Eu tinha vontade de sair correndo.
Relações internacionais são muito complicadas.
Ali na África me sentia mais perto de casa.
Lá na Suécia me flagrava longe da África.
Aqui no Brasil me vejo branco e preto.
Santooooooooooooooos!
quinta-feira, 3 de junho de 2010
O abismo
Muitos dias antes de minha partida para a Suécia amigos e amigas perguntavam: “Já fez as malas?” “As malas estão prontas?”. Não estavam. Arrumei tudo um dia antes de viajar, como é meu costume. Na semana anterior à partida tinha feito compras e uma relação do que levar.
Agora voltei, depois de 22 dias. Todos se aproximam e perguntam: “E aí, como foi a viagem? Foi tudo bem? Foi ótima, né?” Os mais “psicológicos” falam numa “boa experiência”. Todos se expressam com um sorriso, não raro beijos, abraços e tapinhas nas costas. Noto em suas faces a expectativa de uma resposta positiva, como se eu tivesse de confirmar: “Foi ótimo, excelente, maravilhoso”. Mas não é simples assim. Nem tudo foi bom. È preciso escolher com cuidado os adjetivos para qualificar a viagem. Explico, aos poucos. Para isso terei de repetir algumas informações que já foram dadas no blog. Tenham paciência.
Estive num país onde o faxineiro da universidade ganha R$ 4000,00, com um custo de vida equivalente ao nosso. Os professores ganham cerca de R$ 20000,00. Ou seja, 5 vezes o ordenado do pessoal da limpeza. Um dos lugares de melhor distribuição de renda do planeta. As comparações com o Brasil são inevitáveis. Cemeçando por aí, é uma “experiência” forte, cruel. Eu já sabia disso, mas ver de perto torna a diferença abissal. Prossigo.
Os professores em torno de 50 anos de idade já tinham estado ao menos em dez países do mundo, fazendo cursos, dando seminários, palestras, participando de conferências. Não exagero. Contavam casos de suas andaças pela China, Japão, Canadá, países da Europa. Tudo com programas do governo sueco ou da União Européia. O vão do abismo assusta.
O ensino é gratuito, Os jovens universitários recebem para estudar, algo em torno de R$ 1800,00, para alojamento e comida. Podem morar e se alimentar com dignidade. Todos falam inglês. Há muita oferta de programas para intercâmbios internacionais, em boa parte pagos pelo governo ou pela União Européia, nos dois sentidos: estudantes suecos fazendo cursos fora, gente do mundo inteiro estudando na Suécia. Uma das classes do Geza tinha alunos de 14 nacionalidades diferentes.
Automaticamente penso nas oportunidades de um jovem sueco e as comparo com as chances de meus filhos e de meus alunos. A sensação resultante não é das melhores. Ah, sim: os faxineiros também falam Inglês, assim como garçons e garçonetes e quem mais a gente encontrar na rua.
No Programme for International Student Assessment (PISA), que mede as competências em Linguagem, Matemática e Ciências dos estudantes dos países da OCDE, a Suécia está sempre bem acima da média. Nós, muito abaixo. Qualquer comparação nesse sentido é muito cruel. O abismo se escancara.
De outros aspectos da viagem já falei, nas postagens do blog acima transcritas. O silêncio na aula, apesar de quase aflitivo para meus ouvidos acostumados, à algazarra brasileira, sem dúvida revela um respeito não encontrado em nosso trópico.
Muitas coisas chamam a atenção do viajante atento. A discrição é um valor. Mesmo na arquitetura, pode-se ver nas fotos, não há os ornamentos encontrados em outros países da Europa, afeitos ao barroco, ao rococó, ao neoclássico. As paredes são lisas, as cores pouco variadas. Claro que senti falta das belezas que vi nos países do Sul, mas é o jeito deles. Não pensem que é falta de imaginação; é um valor social. A Suécia é uma das mecas do design e da criação tecnológica.
Tem-se a impressão, andando pelas ruas, de que não há arrogância. Não se vê os meninos “bombados” ou com ginga de malandro, “pit boys” intimidando os passantes com sua atitude agressiva. Na estrada os carros não “grudam” na traseira do seu veículo, dando sinal de farol para ultrapassar, como se estivessem numa pista de corrida. Se há comportamentos de superioridade, pertencem a um código inacessível para mim. É extremamente confortável e pacífico viver num lugar como este, imagino. A sensação de segurança é mesmo preciosa. Esse abismo…
Considerações pessoais
Alguns incidentes fora do meu controle contribuíram para que a viagem não fosse aquilo que sonhei. Em primeiro lugar Eyjafjallajokull, o vulcão islandês. Como já escrevi, a erupção impediu que a Reginaembarcasse para Lulea, alterando completamente minhas expectativas. Tínhamos programado conhecer Estocolmo. Pensei em ir sozinho. Não foi possível, pois os aeroportos fechavam e abriam conforme o vento, em sentido literal: as cinzas eram carregadas de lá para cá, sem que os meteorologistas pudessem prever o amanhã. Se eu arriscasse ir em um dia claro, não poderia ter a certeza da volta. O trem para a capital demorava umas 15 a 16 horas e custava três vezes mais que a passagem de avião. Fiquei confinado numa cidade de 40000 habitantes, que “fechava” às 8 horas da noite. Uns poucos restaurantes mais ousados abriam até as 9 horas. Música ao vivo? Nem pensar.
Salvou-me do tédio o laptop, pois ali usava o Skype e escrevia muito. Já que a situação era essa, resolvi me comportar como um antropólogo urbano munido de seu caderno de campo e ir anotando as observações dos costumes locais. Boa parte disso está nas postagens do blog. Pelo Skype, todos os dias conversava com a Regina e com meu irmão. Eventualmente batia um papo com outros conhecidos brasileiros.
Trabalhei pouco para uma estada tão longa. Dei poucas aulas, participei de poucas atividades. Houve alguma desorganização por parte dos suecos, aliada a outros fatos. A Anita Weterström, maior entusiasta do programa de intercambio, havia se aposentado recentemente. O Geza e sua mulher, Caroline, desdobraram-se para tornar minha fase sueca agradável, mas não tinham nenhum papel oficial no programa. São seres humanos excelentes. A substituta da Anita ainda não havia tomado pé da situação e de todas as implicações de gerir o processo.
Para sustentar a permanência e trabalho de um estrangeiro é preciso mais que um cargo. O anfitrião deve proporcionar ao visitante uma familiarização com o país e a cidade. Coisas fora do programa, como levar aos pontos turísticos, almoçar no final de semana, jogar conversa fora tomando chope, fazem parte do intercâmbio. Esse tipo de convivência é fundamental, ainda mais levando-se em conta que o objetivo do programa que temos com a Suécia é a troca de experiências entre culturas. Os novos colegas nórdicos, a meu ver, ainda não atinaram para essa realidade.
Um ponto puxa outro, o texto parece não ter fim. A tal “troca de experiências entre culturas” é muito rica, mas não é simples. Ao dar aulas, falei de assuntos que conheço, mas estão fora da minha experiência profissional. Os temas das duas primeiras palestras foram Violência e Favelas. Depois participei de um seminário com os estudantes interessados em intercâmbio. Meu papel era apresentar o Brasil e discorrer sobre os pontos que supostamente interessassem estudantes estrangeiros. Dadas as tremendas diferenças entre os países, tive de fazer um tremendo esforço para tornar nosso país atraente sem cair no lugar comum do samba, mulher e carnaval. Construir ponte é difícil, ainda mais levando-se em conta o vão do abismo.
Nem toquei nos nomes dos teóricos que mais estudo, Heidegger e Foucault. Não havia nada parecido com psicologia Clínica ou Psicoterapia na universidade. Não pude mostrar o que sabia de melhor. Foi frustrante.
Fiquei num apartamento muito pequeno, uma quitinete. Tenho uma apresentação do Power Point mostrando a minha casa sueca. Posso enviar o arquivo para quem o desejar. Já morei sozinho algumas vezes na vida; não me incomoda, acho até interessante. Para quem tem tendência a sentir solidão, ficar 21 dias em Lulea, nas condições em que fiquei, seria um problema sério. Foi curioso dar conta de tarefas domésticas que eu não fazia desde os tempos de república, ao menos diariamente. Lavar a pouca louça era o de menos, faço isso quase todo final de semana. Varrer a casa já não é uma tarefa tão familiar, cuidar da roupa menos ainda. Eu tomava café da manhã no apartamento, almoçava na faculdade e jantava num dos restaurantes orientais da cidade, que são muitos e relativamente baratos – japoneses, chineses, tailandeses. Eventualmente fazia um lanche em casa. Pois tudo isso foi o que chamam de uma “experiência” interessante. Durou três semanas, foi a conta.
Algumas palavras sobre dinheiro. Chegando em Lulea recebi um montante para pagar moradia alimentação e transporte. Como eu almoçava na universidade, com um tipo de vale-refeição, a quantia foi suficiente. As contas do Brasil continuaram, é lógico – IPTU, condomínio, luz, etc. Para isso eu havia deixado uma reserva. Tudo computado, inclusive a passagem da Regina, que já estava paga, o déficit foi grande. Não sei se e quando vamos ser resarcidos pelas companhias aéreas, pois há seis milhões de pessoas na mesma situação.
Espero ter dado uma idéia da dificuldade em adjetivar a viagem. Foi “legal”? Interessante? Forte? Boa? Prazerosa? Não há uma classificação fácil. Não é simples.
Interessante e forte são palavras razoáveis para a descrição. Já “tudo bem” ou “legal” não sevem. Prazerosa? Certos momentos. Voltaria a Lulea por alguns dias, para visitar os amigos que fiz. Entusiasmante? Com certeza não. Significativa sim, mas a palavra tem tantos significados! Valeu a pena.