Véspera, de Carla Madeira

Título: Véspera
Autora: Carla Madeira
Editora: Record
, 2021


Nesta apreciação vou abusar das citações por um motivo claro: a escrita de Carla Madeira me encanta. Sua descrição da subjetividade é precisa e preciosa.

Véspera é a história de dois irmãos gêmeos.
A vida vai dando forma a cada um. Ou seriam já diferentes desde o berço, apesar a semelhança exterior? Não se procure uma resposta fácil. A autora escrutina cada evento, cada impulso, de onde nascem (ou aparecem?), da igualdade fenotípica, duas personalidades distintas. Cada gesto importa.

“O gesto brusco não nasce de uma intenção. Irrompe, vaza o limite da alma exausta, é um corpo em derrame. Alguém pode compreender isso? Não!!!!, gritam as vozes do mundo ressoando as escrituras onde a falta de perdão é fulminante. Há verdades íntimas demais para serem aceitas em público. Todos sabem. Todos fingem não saber.”

Os temas família, maternagem e sexo atravessam o livro. O acaso e a necessidade apresentam-se constantemente, em seu entrelaçamento indecifrável. Custódia é a mãe dos gêmeos, aquela que lhes ressaltará sempre a semelhança, contra um mundo que insiste em dar a cada um sua feição. A cada instante a igualdade desejada lhe escapa:

“Uma das coisas de que Custódia mais se orgulhava na vida era de colocar a comida quente na mesa. Os convidados se sentaram de maneira aleatória, embora o destino não conheça essa palavra, cada acaso tem poderes de deslocar os acontecimentos e eles se tornam o que são. Como em um jogo de tabuleiro, a disposição das peças em uma mesa contém em si o desenlace.”

Professores, padres, colegas e namoradas vão surgindo na trama. Todos questionam e abalam, cada um a seu modo, os códigos arraigados da família. Mas penetrar nesse mundo não é uma jornada pacífica. Considero esta passagem um primor:

“Há nas famílias uma demarcação de território onde as fronteiras dizem: daqui para dentro somos nós. Dentro é onde cresce um tipo de vegetação particular, que a um estranho parecerá mato, mas que na família é flor. E pode ser flor aos olhos do visitante o que é espinho entre os que se machucam faz tempo. As sonoridades também exigem ouvidos apurados ali, naquelas solenidades. Há entonações que vibram mágoas, e trinados de alegrias ou saudade. Há sempre uma faixa de volume tolerado ao desrespeito, a textura da ironia consanguínea, os tons menores da tristeza e a resiliência do amor, quase sempre nas pausas, além do som, ora estridente, ora sutil, das entrelinhas. Coisas ouvidas na fermentação dos anos. Nas famílias, desiste-se muito das palavras para evitar exílios e, assim, nascem desertos.”

É muito rico perceber o fascínio de Carla Madeira pelos acasos, pelo inesperado, sua atração pela percepção brusco que tudo muda, por aquilo que irrompe.

“A consciência definitivamente não é um amanhecer. É luz elétrica encanada até um interruptor. Passa-se do escuro ao claro, sem nuances. É como olhar, distraído, para a parede de um cômodo que se visita diariamente e ver, com assombro, em estado adiantado, uma infiltração que não se viu começar, nem crescer. Mas que está lá num tamanho considerável. Ontem não estava, hoje está. A consciência é a posse das evidências num gole. Tal qual a cara toma posse do soco.”

O livro interessa a todos que se fascinam pela complexidade do comportamento humano, principalmente pelo misterioso mundo das famílias, onde cada um forma sua personalidade básica. A mim encantam as maneiras com que a autora consegue colocar em palavras poéticas fenômenos psicossociais intrincados, dando-lhes uma outra perspectiva de compreensão, aquela da alma.