Apreciação de Luiz A G Cancello
Este é um livro surpreendente. Escrito por um autor brasileiro jovem, com menos de 40 anos, refaz com competência e rigor uma parte da história da Psiquiatria e, por afinidade, da Psicologia.
O romance é ambientado numa pequena vila suíça, onde há uma clínica para doenças mentais que pretende usar métodos mais modernos para o tratamento de seus clientes, notadamente a psicoterapia pela fala.
O enredo se passa nos anos 50, ainda no pós-guerra, quando muitos dos pacientes eram soldados com os mais diversos tipos de traumas sofridos no conflito. Nicolas, um psiquiatra francês, defronta-se com suas incertezas acerca das doenças mentais, dos tratamentos e de seu papel na clínica e no mundo. A ele intriga, em especial, a melancolia.
“E, no entanto, pensou Nicolas, quando estamos despidos de qualquer ansiedade, a melancolia se revela. Havia uma ligação entre ansiedade e melancolia? A psiquiatria costuma associar as atitudes nervosas com a neurose, a histeria e a esquizofrenia, mas não com a melancolia, tão letárgica e sombria. No entanto, pensou Nicolas, é como se a ansiedade fosse uma espécie de camada de nuvens que ocultasse um vale profundo.”
Sua esposa, Anna, uma mulher preparada e inteligente, fica entediada com a vida no pacato vilarejo, e vai trabalhar no CERN, a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, então em seus primórdios, centrada no uso da energia nuclear para fins pacíficos. Ela é uma jornalista científica, empenhada em compreender as noções intrincadas da Física Quântica.
Os diálogos do casal são muito ricos, cada um extraindo do saber do outro metáforas possíveis para compreender o mundo. O psiquiatra tem afinidade com as ideias freudianas, que sua esposa tenta captar e fazer analogias cm o que escuta dos físicos. Ele, por sua vez, é atento aos conceitos que a esposa traz, oscilando entre a incompreensão e os lampejos de entendimento.
O livro se concentra mais na vida interior de Nicolas, de humor oscilante, às voltas com suas dúvidas profissionais e pessoais. Sua família foi poupada na guerra, por conta de algumas artimanhas que depreendemos das recordações do psiquiatra. Por conta disso, além de seu temperamento frágil, ele carrega uma culpa histórica. Os modos como procura lidar com os conflitos interiores são descritos com riqueza no texto.
Há breves relatos de sessões com os pacientes da clínica, em especial com um soldado americano que apresenta uma grande tristeza, com um homem caracterizado como esquizofrênico e uma mulher, trabalhadora numa instituição importante para a guerra. Os três personagens terão papel relevante na trama. Em meio aos tratamentos, surge o primeiro antipsicótico, que vai provocar mais conflitos em Nicolas: é possível um composto químico tratar doenças de fundo nervoso?
Volto ao início: é um livro surpreendente. O autor passou por problemas psiquiátricos, como ele mesmo declarou em entrevistas e no posfácio, agradecendo aos profissionais que o trataram. Pode ser que tenha escrito o texto como uma elaboração de seus sintomas (o que é temerário dizer, bem sei). Quem sabe o fez para retribuir os tratamentos que recebeu, também pode-se pensar, como tantas outras possibilidades. De todo modo, foi de uma competência extraordinária