Luiz A. G. Cancello
Não, não, você está enganada. Esse que gosta de turismo ecológico é o Quim. O outro, apreciador de queijos, é o Joca. Você está sempre confundindo o nome dos meus amigos. E o Joca não é mulherengo, acho até que ele nem é muito chegado em mulher. O que veio comigo em casa, ontem, para acabarmos de tomar cerveja no quintal é o Zoroastro, dizem que não é o nome dele, mas é conhecido assim. Eu sei que já eram 3 horas da manhã, mas e daí? Toda hora é hora, ninguém estava fazendo nada de errado.
O Zorô gosta de moças, é verdade, mas quando está com a gente fica tranqüilo. Não esquenta, papo de homem é assim mesmo, sempre pinta um “quem comeu quem”, mas a conversa gira em torno de um monte de coisas – futebol, filmes, trabalho. Não acredita que se fale em trabalho? Tá certo, não é o assunto principal, mas sempre acontece algum fato que merece comentário. Tem gente que jura: fato acontece para ser comentado. Se ninguém falar no assunto, é como se não tivesse acontecido. Homem é assim mesmo.
Aquela mulher que a Flávia diz que viu sentada lá com a gente era uma amiga do Zezo. Não se lembra do Zezo? Um dia nós o encontramos no cinema, lembra? É verdade que há tempo não vamos ao cinema, mas encontramos esse meu amigo numa das últimas vezes em que fomos. Não a culpo por tê-lo esquecido, isso já faz uns meses, né?
Existe mesmo essa camaradagem que irrita certas esposas, já que estou proibido de chamá-las de “patroas”. A galera masculina sempre foi assim. Desde os primitivos havia as Associações Secretas de Homens. Ah, sei que você não gosta quando eu invoco a Antropologia para justificar minha esbórnia, mas considere isto um vício intelectual. No entanto, já vi mulheres que invejam essa cumplicidade masculina. Traidoras? Não seja radical. Elas apenas observam os fatos.
Sim, entendo a sua posição. Até sei que fico pouco em casa, mas o bar é ali na esquina, você pode ir lá me chamar quando quiser, apesar de já ter me dito mil vezes que jamais se rebaixaria a tal ponto. Não vejo humilhação alguma, quem iria ficar por baixo era eu. Aconteceu uma vez com o Venâncio. Você nem imagina a gozação dos amigos, no dia seguinte. É assunto pra mais de uma semana. Talvez por isso mesmo você não faça tal insensatez. Quer conhecer a mulher dele? Um dia a gente combina e saímos em dois casais.
É incrível. Quando eu refuto todos os argumentos, você vem com essa de cheiro de cerveja, diz que eu ronco quando bebo, que faço barulho para entrar no quarto. Mas os meninos não gostam que eu durma no sofá da sala, ficam pensando que a gente não se dá bem, tenho medo de causar-lhes problemas psicológicos. Já li alguma coisa sobre isso, pesquisadores americanos confirmaram num estudo sério. Tá bom, tá bom, não apelo mais para justificações científicas.
Caramba, você não pára de forjar argumentos bobos! Eles NÃO têm um pai alcoólatra. Eu gosto de ter amigos, isso é um bom exemplo de sociabilidade, esquisito é ficar em casa sentado, vendo televisão. Vou comprar um roupão, chinelos de aposentado e um cachimbo para bancar o inglês. Em menos de uma semana você vai me pedir para voltar ao boteco. Quero só ver.
Peraí, não me deixa esquecer: o Fininho ligou? Responde, em vez de perguntar o porquê do apelido. Quer mesmo saber? Ele gostava de enrolar um cigarrinho, digamos, de palha, quando era mais novo. Já parou com isso. Mas telefonou ou não? Ah, você nem dá tempo para escutar os nomes. Certo. Quando a Zilda ligar, para vocês ficarem falando mal dos maridos, vou me fingir de desentendido, ao invés de tratá-la com educação.
Meu bem, isto está ridículo, eu querendo sair e você na frente da porta, discutindo o sexo dos anjos. Desculpe, não queria ofendê-la, nem desqualificar suas razões. Mas o pessoal está me esperando, hoje tem reunião da Diretoria. A Diretoria do bar, ora essa. Cargo? Ninguém tem. Lá tudo é muito democrático, todos exercem a mesma função, ou seja, ninguém faz nada. Estou rindo da piada, não de você, deixa de ser paranoica e sai da frente.
Claro que não vou forçá-la a sair daí. Jamais encostei a mão numa mulher – de forma violenta, é claro. Posso sair pelos fundos, se você preferir. Vai ficar esquisito se a vizinha me flagrar no corredor lateral, como se fosse um ladrão fugindo de casa. Eu, ladrão de sonhos? Dos seus sonhos? Nunca pensei assim, mas soa dramático. Chega a ser quase interessante. Quando eu voltar a gente fala nisso, tá bem? Depois de umas cervejas eu raciocino melhor.
Por favor, não chore, desse jeito você vai conseguir que eu me sinta culpado.
Não, não, ela está enganada. Ela não sabe, ninguém sabe.
Raras vezes a turma toda está presente. Em geral, fico reclamando da vida para um ou dois amigos, antes ou depois de escutar as reclamações que eles têm a fazer. E tantas vezes me sento e bebo sozinho que ela dificilmente acreditaria.
Mas são essas as ocasiões em que algo acontece. Sento na mesa do canto, bem perto da porta, de onde posso ver as cadeiras que ficam na calçada. Tomo quatro ou cinco cervejas; essa pequena quantidade basta para me deixar ligeiramente tonto. Não é preciso mais, a intenção de resistir a uma leve embriaguez está fora de cogitações, entrego-me ao álcool de bom grado. Fico em silêncio, pouco me movimento, espero não ser notado.
Levanto então o periscópio. Bom prato tornei-me, depois de velho, para os psicanalistas de plantão! De início olho como se o foco pairasse por cima das cabeças das pessoas, em lugares precisos mas voláteis, pontos aéreos cambiantes. Depois, vagarosamente como o ponteiro da horas, vou descendo a mira. Então uma névoa umedece a lente; os rostos e os corpos aparecem nublados, mas consigo distinguir, por artimanhas da imaginação – ou da memória? – detalhes precisos: os rostos jovens sem rugas, a mão na outra mão, um cotovelo pousado com graça na toalha da mesa, dedos em pente ajeitando os cabelos. Compõe-se ali um mosaico, um caleidoscópio, o torpor conduz as imagens, que passam de uma à outra sem perda de continuidade. Deixo que o movimento se aposse de mim; tudo isso dura muito pouco, filme de curtíssima metragem. Tomo mais uma ou duas cervejas e saio, alimentado para enfrentar a noite de sono.
Chego em casa e ela está esperando, amuada. Chora, fala mal dos meus amigos, deixo que fale e chore, respondo às lamúrias de costume com as frases de sempre.
Evito apenas olhá-la nos olhos, com pavor que roube o meu segredo.