Apreciação de Luiz A G Cancello
A narrativa faz jus à palavra do título do título: delicada. Percebo cada palavra do texto como depositada com extremo cuidado, como quem pousa um cristal numa superfície dura e irregular, apreciando o equilíbrio e a instabilidade.
As personagens principais são femininas: Laura, pre adolescente, sua avó e sua bisavó. A mãe da menina sumiu no mundo, e dela pouco se sabe.
Margarida, a avó, cuida da neta numa vida precária, ajudada pelo amigo Camilo. Mais tarde a bisavó da menina vira morar com as duas, dando outra configuração à convivência das mulheres.
Margarida, quando moça, fugiu de casa com um circo, onde auxiliava o mágico. Não se estranhe a pontuação peculiar, os itálicos e a ausência de maiúsculas. Aline Bei experimenta, com competência, os aspectos gráficos do texto.
“os tambores rufam, as luzes se abrem num estrondo e no palco desponta a bela assistente de que tanto se fala na cidade — os rapazes assoviam, fazem guerra de pipocas.
de vestido branco, Margarida acena, imaculada, e se o público pudesse tocar em suas mãos veria que se parecem com as de um cadáver muito delicado que morreu talvez de susto. se de perto, veriam que seus olhos são ainda mais perturbadores. há neles uma luz antiga, que vem de muito antes daqueles rapazes terem pelos, e que se parece, sobretudo quando o espetáculo termina, com um blues.”
Glória, filha de Margarida e mãe de Laura, também se evadiu para nunca mais. Sua presença, marcada em conversas e histórias esparsas, é uma ausência que deslisa pela casa.
“— conta uma história da minha mãe?
— quer a do cinema?
— sim!
— (puxa o banco para mais perto) sua mãe adorava música. ainda deve ser assim, porque essas coisas não mudam, essas coisas são quem a gente é. quando ela começou a ter idade para assistir filme, dizia que o melhor lugar para ouvir música era dentro deles. porque a música não ficava solta, tinha onde se deitar. música é igual luz, existe sozinha, mas só ganha alma quando ilumina alguma coisa. ela assistia muitos filmes na tevê. quem visse de longe, achava que ela estava dormindo. mas é que depois de assistir uma cena, ela fechava os olhos para ouvir o que tinha visto. quando descobriu o cinema, queria ir todo dia. mas não tinha como. eu falava Glória, minha filha, não tem como, a gente não tem dinheiro, não dá. até que ela inventou de ser lanterninha. usava quepe, trabalhava horas e horas, só para assistir as músicas.
e ainda que Laura tenha ouvido aquela história incontáveis vezes, não se cansava nunca.”
Felipa, a bisavó, não fugiu, mas sofreu violências e teve uma vida sacrificada. Laura assimila sua presença nos cuidados e nos detalhes. Procurar os óculos da avó pode ser uma epifania.
“quando escuta onde estão meus óculos?!, volta depressa ao quarto, olha na cama e no beiral da janela. com uma agitação crescente, vai procurar na sala, no banheiro, e os encontra esquecidos na pia, robustos como se deles pudesse nascer um microscópio, e no entanto mais solitários do que quando estão no rosto da bisa.
Laura observa o modo como a luz do banheiro os envolve, e aquela súbita pausa do objeto em seu uso atrai a menina de um jeito silencioso demais para tentar explicar. mas é bonito, sim, ver as coisas de alguém espalhadas pela casa. dá amor pela pessoa e pela casa. é uma partitura de como a vida se desenrola naquele lugar.”
A a convivência das mulheres é mesmo delicada, em mais de um sentido. Há um cuidado mútuo, presente a cada cena, apesar das tensões. Aline Bei destaca o papel feminino tradicional, sempre atento às necessidades dos outros, ao mesmo tempo que mostra o cansaço desse sacrifício nem sempre reconhecido.
Em contraponto a vida da casa, sabemos da convivência de Laura com as-amigas de escola, suas vivências e descobertas de mundo pré-adolescente, apresentadas com maestria. O leitor visualiza facilmente cada situação.
Aline Bei é descritiva, entremeando a construção dos comportamentos e dos cenários com belas comparações e metáforas. Quando procurei no texto essas figuras isoladas, elas eram boas, mas não excepcionais. Inseridas no conjunto, no entanto, em momentos precisos da descrição, tornam o texto bonito e sensível. É um estilo que me agrada, a descrição exaustiva e poética, deixando que o sentido da escrita se mostre a partir de uma escrita quase cinematográfica, como se fosse um roteiro. A autora desenvolve essa técnica com maestria. Confiram.