Luiz A G Cancello
Eu chegava da escola e a mãe pedia silêncio, o dedo indicador esticado frente à boca:
– Chhh! Seu pai está fazendo Imposto de Renda.
Pairava na casa um ar de reverência e temor. Por algum motivo que eu não compreendia, preencher e enviar o formulário do imposto era algo solene e motivo de muito nervosismo. Hoje entendo, era uma tarefa complicada. Comprava-se na banca ou nas papelarias um papel cheio de campos para serem preenchido à mão: Escrevia-se os dados pessoais, salário, gastos com saúde e não sei mais que despesas a serem deduzidas, além outras informações importantes à época. Qualquer erro ou rasura implicava em sair de casa, comprar um novo formulário e recomeçar tudo. Uma canseira.
Desde que comecei a ganhar meu próprio dinheiro, o pai se ofereceu para fazer meu Imposto de Renda. Era cômodo e confiável, afinal ele era funcionário do Banco de Brasil, sabia os segredos contábeis. Eu ficava distante e bem quieto. Só assinava quando era chamado, no fim do processo. Tenho na memória que era feito um rascunho, talvez num xerox do formulário. Quando fui morar fora de casa, levava meus papéis – não havia internet – e tudo seguia do mesmo jeito.
Um dia fui chamado para assinar a versão final. Entrei no escritório e fiz minha parte. O pai pegou a folha e ficou transtornado. Com os olhos chispando, disse:
Você assinou no lugar errado!
Pânico. Achei que estava tudo perdido. Como sair dessa? Por sorte, meu genitor/contador não gostava de esferográficas e pedia para firmar o documento com caneta tinteiro. Lembrei-me então dos tempos do primário, quando a molecada apagava a tinta com cândida, para rasurar o boletim. Não era uma atitude louvável, mas a lembrança me salvou. Pedi ao pai para ficar calmo (não adiantou) e esperar um pouco. Fui até a dispensa, peguei cândida e um palito, para passar o líquido em cima do traço anterior. Com muito cuidado e precisão, apaguei a assinatura e fiz outra, agora no campo correto.
Foi um alívio enorme. O pai, que não conhecia o recurso, ficou perplexo. Olhou o papel, colocou-o contra a luz e teve de admitir, talvez a contragosto, que estava tudo certo. Com voz ainda irritada, disse-me para sair dali e retomou suas atividades. No dia seguinte o clima voltou ao normal, como acontece em tantas famílias. Anos mais tarde, recordando o episódio, rimos bastante.
Mas não teve jeito. A imagem da mãe pedindo silêncio, quando eu voltava da escola, ficou para sempre na minha cabeça. O dia em que assinei no lugar errado também permaneceu comigo. São lembranças tão fortes que me paralisam frente ao imposto. Fico tenso só de pensar em preencher o formulário, agora totalmente informatizado, onde eu poderia errar e apagar quantas vezes quisesse, sem utilizar cândida ou palito. Não houve terapia que curasse o trauma. Resolvi o assunto por outros caminhos.
Em março reservo um dia para de acessar bancos, INSS, plano de saúde e outros sites, fazer o download dos documentos necessários ao imposto e juntar cópias dos recibos dados aos clientes. Remeto os arquivos para a contabilidade por e-mail e pago a taxa estipulada, por pix, Depois de alguns dias assino digitalmente meu Imposto de Renda. Foi-se o tempo da papelada e das canetas tinteiro, para meu grande alívio.
Os contadores me salvaram. Já utilizei os serviços de quatro desses santos profissionais, dois homens e duas mulheres, tornei-me amigo de todos. São tão importantes quanto meus terapeutas. Sem eles eu ainda sofreria de estresse pós-traumático.
Publicado no jornal A Tribuna em 11/102024