Tudo é Rio, de Carla Madeira.

Quando meus alunos solicitavam uma bibliografia sobre o Amor, em vez de citar livros de Psicologia, eu indicava a saga de Tristão e Isolda e um livro de Garcia Marques, “Do Amor e outros Demônios”. Agora vou incluir este “Tudo É Rio”, de Carla Madeira.
Os aspectos extremos do amor – violência, paixão, sexualidade
desenfreada, o sagrado, até mesmo a paz – estão contidos e contados com rara habilidade na história contada pela autora.

A trama se passa num lugar indefinido indefinível, mas é possível imaginar uma pequena cidade brasileira.
Uma órfã é criada com a tia, e logo nota a diferença de tratamento que sua tutora dá às primas. Logo percebe sua beleza e poder de sedução, recursos que usa para sair da situação conformada e humilhante da vida em família.
A descoberta desse poder dá o tom do livro. Ao encontrar alguém imune à sua sensualidade, Flora desencadeia uma sequência de acontecimentos que vai encontrar outra vertente da narrativa.
Venâncio e Dalva, apaixonados e fechados em seu mundo idílico, por essa mesma característica de exclusividade se veem enredados num acontecimento trágico, provocado pelo homem. Este é o segundo eixo. A autora traça com habilidade e força de escrita o entrelaçamento desses dois caminhos.
A crueza da linguagem que se refere à sexualidade de Flora se alterna com passagens reflexivas, com profundidade e bom gosto.

“É tão difícil existir sabendo tudo que a gente sabe sobre existir e, ao mesmo tempo, sem saber nada sobre o que vamos passar daqui a pouco, sem poder proteger de verdade quem a gente ama mais de verdade ainda. É invenção nossa pensar que Deus pode tudo, minha filha. Peça a Deus para voar, nem Ele pode fazer isso, ia ter que fazer você ganhar asas, virar passarinho e aí não seria mais você. Nem seria Deus, seria a fada-madrinha, que faz ratinhos virarem cavalos e abóboras, carruagens. Isso é alterar a natureza das coisas, fazer outra fôrma, e, sendo Ele Deus, não pode corrigir nada que Ele mesmo fez. Já pensou a gente ficar mandando Deus fazer de novo até ficar bem-feito? Igual eu tenho que fazer com Benedita aqui na fazenda, não tem cabimento.” 

A autora sabe transitar entre esses extremos com muita habilidade. Há no livro um tom de fatalidade, uma incursão pelos aspectos imprevisíveis da vida, aquilo que se desencadeia com uma força avassaladora e traça o destino. Ao falar de um nascimento, escreve:

“As intensidades que nascem com um filho são desconhecidas: amor, medo, angústia, cansaço, ternura, alegria, dor, tudo é fermentado e cresce na medida de cada história. Mas nem nessas horas mais sagradas o imprevisível se inibe. O triz nos espreita. Uma folha que cai da árvore desagarra uma lembrança, desequilibra, faz a gente pisar torto no passo seguinte, dois dedos para o lado se escapava do escorpião. Um centímetro desarruma tudo, desencadeia suas consequências, estamos presos com o fio invisível da aranha.”

Embora a autora não faça disso explicitamente uma tese, é possível ver que a força está nas mulheres. Flora, Dalva e Aurora, mãe de Dalva, além de Francisca, outra personagem maternal, tomam a vida pelas rédeas. Os homens, embora importantes no enredo, aparecem mais frágeis, sujeitos a seus instintos e impulsos.
Em suma, um livro que vale a pena por sua força narrativa e excelente domínio da linguagem. Uma aula de Literatura e de vida.