Uma apreciação de Luiz A G Cancello
O livro Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, pegou-me de surpresa. Tinha sido bem recomendado, como tantos outros, e nem sei por que o escolhi para ler. Logo nas primeiras linhas é muito claro que se está diante de uma obra prima.
Há duas personagens principais, as irmãs Bibiana e Belonísia, unidas por um acidente que ocorre logo no início da narrativa. São filhas de Zeca Chapéu Grande, curador, personagem forte e onipresente na trama, uma espécie de Pai de Santo do Jarê. Consulto a Wikipedia: Jarê é uma religião de matriz africana, mais especificamente um candomblé de caboclo, que existe exclusivamente em cidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Uma de suas principais particularidades é o grande sincretismo religioso, com influência do catolicismo, da umbanda e do espiritismo kardecista. Pode ser considerado um amálgama das nações bantu e nagô, as quais se uniram o culto aos caboclos.
Itamar joga com muitos planos: a escravidão que nunca acabou de fato, o papel da religião nas comunidades negras, as relações de dominação dos senhores da terra e dos camponeses. Impressionou-me especialmente a trama de construção de identidades, que é uma aula magna de Psicologia e Antropologia. Conhecemos a formação da personalidade das duas irmãs e de seus pais, em capítulos que vão contando as histórias de maneira não linear, mas com total clareza.
Uma das imagens que perpassam toda a narrativa são as casas dos negros. Não podem ser construídas de tijolos e cimento, apenas de barro, para que não se perpetuem. A cada chuva forte há de se refazer ou erguer uma nova moradia. Na despedida de uma casa antiga, alguém narra:
“O velho não tocou em nenhuma parede. Não retirou nenhuma forquilha. O tempo se incumbiu de desmanchar a casa antiga. Sem abrigar mais nossas vidas, parecia se deteriorar numa urgência própria da natureza que a envolvia. A cada chuva forte uma parede desmoronava e, por fim, o vento completou sua luta. A parede de terra, do barro que era o chão de Água Negra, voltou a ser terra de novo. Nasceram ervas e flores minúsculas em meio a unidade que surgia com o orvalho e com a chuva que caía quando era da vontade dos santos. Fiquei atenta a tudo o que acontecia, sabia que nada retornaria. Olhei com certo encantamento o tempo caminhando, indomável como um cavalo bravio.”
O autor joga com diferentes narradores, todos personagens do romance. Não há o narrador onipresente, há os pontos de vista de cada um dos contadores da história. E o texto, visto por outro ângulo, é também a História da Fazenda Água Negra, onde foram chegando, instalando-se e criando uma comunidade os negros de diversas origens. Aos poucos dão-se conta que são quilombolas, que possuem uma forte identidade cultural. A terra é posse formal dos patrões, mas existencialmente pertence aos camponeses. A construção dessa consciência vai ter seus desdobramentos políticos, a partir de metade do livro. Em momento algum o autor é panfletário; a consciência política emerge das vivências dos habitantes, conforme mudam certas condições sociais.
Descrever com delicadeza e encantamento as condições de extrema penúria daquelas pessoas, sem negar ou romantizar a pobreza, é uma arte que requer muita técnica e sutileza. Itamar consegue destacar, nas brechas da desgraça, nas fendas do trabalho árduo, da insegurança material, em meio à violência e ao alcoolismo, a imensa humanidade de cada personagem e a importância do resgate histórico e espiritual da comunidade quilombola. Neste sentido, o livro tem um forte caráter de denúncia.
Em tempo: o livro ganhou o Prêmio Leya de 2018