
Luiz A G Cancello
Minha vida anda meio complicada. Por conta de uma alergia que tenho desde sempre, vivendo às voltas com bronquites, rinites e sinusites, a velhice me trouxe uma bronquiectasia, diagnóstico conseguido depois de uma conversa de meu clínico com minha pneumologista. Isto significa que os brônquios perderam uma parte de sua capacidade de expulsar as secreções. Eu estava com infecções pulmonares recorrentes, uma a cada três meses. Tenho de fazer – e estou fazendo – fisioterapia respiratória.
Os exercícios são bem eficazes, sinto um grande alívio. Num deles, preciso expirar todo o ar possível dos pulmões, esperar um ou dois segundos e deixar o ar entrar com força. Há outros. O difícil é arranjar algum tempo do dia para fazer o que foi recomendado. É verdade que dá pra fazer em qualquer lugar, desde que eu não esteja sendo muito observado. Deve ser meio esquisito de se ver.
Bem, por conta de ser alérgico, tenho os seios da face, a garganta e os pulmões bastante sensíveis. Há três dias fui num bar onde havia música. Encontrei velhas amigas e ficamos conversando, tentando nos entender numa frequência acima dos instrumentos e da cantora, coisa detestável, afinal estávamos ali para ouvir música ou para conversar? Mas há muito não as encontrava, então os assuntos foram rolando. Quando percebi, minha garganta já estava bem afetada. No outro dia amanheci rouco, quase afônico. A coisa evoluiu para mais uma infecção. Era final de semana e o jeito foi procurar o pronto socorro, onde me receitaram a conhecida dupla de corticoide e antibiótico. Segunda-feira fui ao otorrino, também um velho amigo, que prescreveu mais um exercício, já que eu estava medicado. Consiste em fazer um “trrrrr” bem forte, para vibrar e tirar o edemaciamento das cordas vocais. De preferência, emitir o som em diversas frequências, em glissandos ascendentes e descendentes. Lembrei-me de uma prática muito parecida das minhas aulas de canto, no tempo em que pretendia cantar. Além do glissando, eu fazia vocalizes com o tal ” trrrrr”, entoando uma escala maior. Como se pode imaginar, tive também de esticar meu tempo para essa prática.
Acontece que é recomendado a todo alérgico, aliás a todo mundo, que faça academia. Na minha idade é fundamental não perder o tônus muscular que ainda resta. Quase todo dia, às 7:50, estou na esteira ou na bicicleta para fazer a parte aeróbica, em seguida levanto alguns pesos, esperando adiar a fraqueza inevitável.
Muita gente acha academia um troço meio chato, ficar ali olhando para o nada, caminhando sem caminhar e ouvindo uma música frenética, que dizem ser motivadora. Resolvi tornar a coisa mais interessante. Gravo no celular uns podcasts de assuntos que me interessam e passo a sessão de ginástica tentando aprender alguma coisa. Dizem que é bom para evitar a decrepitude, embora as pesquisas não sejam conclusivas, mas é o que temos à mão. Nestes últimos tempos estou escutando as aulas que o professor Roberto Machado gravou sobre a filosofia de Deleuze. Acho que meus companheiros de atividade física pensam que estou escutando o Roberto Carlos, ou qualquer som de velho. Até há pouco tempo a opinião deles não me importava.
Como se vê, consegui fazer duas coisas úteis no tempo da academia. Pensei então em condensar numa só prática todas as atividades de saúde, haja saúde, que descrevi até agora. Comecei a fazer esteira tentando respirar como a a fisioterapeuta indicou. Deu mais ou menos certo. E, já que estava enchendo e esvaziando os pulmões, por que não fazer o “trrrrr” glissando, ou, melhor ainda, entoando a escala? Seriam quatro atividades num só tempo, essa mercadoria tão escassa. Achei-me um gênio.
Recapitulando: andar na esteira, ouvir o podcast de filosofia, esvaziar totalmente os pulmões e enchê-los abruptamente, emitindo o “trrrrr” glissando, às vezes entoando a escala maior. Nada muito complicado, foi só treinar um pouco e já conseguia fazer todas as tarefas de modo coordenado.
Eu estava tão absorvido pela multiplicidade de fazeres e tão orgulhoso da solução encontrada que não percebi os seguranças da academia se aproximarem. Se esses caras já são grandes em quaisquer circunstâncias, imaginem os profissionais que trabalham num lugar de gente forte. Uns armários. Mas não posso reclamar. Foram bastante delicados. Incialmente perguntaram se eu estava me sentindo bem. Tirei os fones de ouvido, pedi para repetirem a pergunta e respondi que sim, estava ótimo, acho até que dei bandeira da minha euforia, dizendo que estava muito bem mesmo, muito feliz.
Algumas pessoas se aproximaram, ouvi alguém dizer que eu morava no prédio em frente, seria conveniente chamarem um membro da família. Retruquei, achando a situação absurda. O que estava acontecendo? Disseram que eu estava falando sozinho, cantando umas coisas estranhas, perguntaram: “Que tipo de som o senhor está ouvindo?” Expliquei que eram aulas de filosofia, não era música. Houve um silêncio, entendam que foi um silêncio no meio da balbúrdia do falatório e dos detestáveis autofalantes ressoando um ritmo alucinado. “A Unimed é ali na outra quadra”, palpitou um sujeito de bíceps enormes, seguido da concordância de umas moças de pernas esculturais. Pedi que me escutassem, antes de tomar qualquer atitude mais drástica e de preocupar minha mulher. Expliquei cada uma das coisas que fazia, esperava não estar incomodando ninguém. Quanto mais explicava, mais as pessoas se olhavam. Uma delas saiu e foi continuar seus exercícios, logo seguida pelas outras. Ficaram os seguranças, sem saber que atitude tomar. Uma senhora – também há senhoras que se cuidam – perguntou a minha idade, o que eu fazia na vida. 72 anos, psicólogo. Reparei que um dos seguranças queria rir, mas segurou o impulso e logo se afastou, talvez para gargalhar de vez. O outro abanou a cabeça e me deixou em paz. A senhora foi saindo de cena e acabei de fazer os exercícios com tranquilidade, embora com uma sensação de estar sendo observado. Na saída me saudaram com educação, talvez pensando: “Lá vai o louquinho do prédio da frente”
Nos dias que se seguiram os moços musculosos e as moças saradas começaram a me cumprimentar. As senhoras sorriam para mim. Muitos já sabiam o meu nome. Um ou outro puxou assunto, “Quer dizer que o senhor é psicólogo?” “Onde o senhor atende?”, curiosidades perfeitamente compreensíveis, até começarem a me pedir o cartão profissional.
Apareceram aos poucos no consultório, meio ressabiados, as testas franzidas, expunham seus problemas com cuidado, escutando atentamente minhas poucas palavras. Aos poucos foram se soltando. Psicólogos meio loucos são atraentes, transitam na fronteira da sanidade, parecem ser capazes de compreender o trivial e o insólito.
Achei que devia mudar de academia. Estava me exercitando entre diversos clientes e, embora não incentivasse nenhuma conversa íntima naquele ambiente, a proximidade me incomodava. Falei para a secretária que não iria frequentar mais o local. Ela ficou alarmada, chamou o gerente, ligaram para o dono, que me ofereceu gratuidade por tempo indeterminado, afinal ali eu era uma celebridade, não poderia sair assim, sem mais nem menos, muitos iriam me seguir.
Achei ótimo, tremenda massagem no ego, reconhecimento, exercícios de graça, cedi.
Agora os alunos me veem respirando, ouvindo podcasts e fazendo “trrr”, e não se espantam mais. Um ou outro bate palmas, os novos estranham, mas logo são avisados de meus hábitos. Ultimamente começaram a fazer perguntas sobre Filosofia. O gerente me ofereceu uma sala no andar de cima para fazer palestras. Pensei em batizar o lugar de Sala do Juvenal, autor latino do primeiro século cristão, autor da frase “Mens sana in Corpore Sano”, mas ninguém entenderia e eu não iria ter paciência de explicar a cada um o significado. Mandaram fazer uma placa onde estava escrito “Papo Cabeça”. Quartas-feiras às 20h, para quem quiser. Para aquecer, fazemos uns exercícios respiratórios semelhantes aos que pratico regularmente. Vejo que a plateia fica totalmente envolvida, como se estivessem se aproximando, enfim, da transcendência. Não se esqueçam – toda quarta às 20h. Espero vocês lá.