Sombras

Luiz A. G. Cancello

A primeira impressão é pouco precisa. Um vulto, de capuz, como um antigo frade. O tom da roupa é cinzento, de um sujo não muito convincente, estudado. Vejo-o de cima, o rosto oculto, mas adivinha-se: maxilas largas, ossudo, cenho franzido, queixo pequeno. Move-se devagar, com cuidado.

Figuras medievais sempre me perseguem. Imagens em naves de catedrais, com suas linhas de cruz orientadas pelos quatro ventos. Vultos em torno do altar, fincado a fundo na terra e alto para alcançar céu, unindo os três níveis verticais. 

Há no Medievo uma luz esmaecida, um tom obscuro, que as tochas a muito custo conseguem apenas sombrear. Por aí circulam os seres de capuz, pois algum frio sempre ronda. Mesmo no calor eles não conseguem se livrar de suas roupas, que lhes cai como uma identidade.

A catedral é gótica. Sem os arcos das janelas, sem a luz filtrada pelos vitrais, o movimento das pessoas não faria o menor sentido. É isso: um vai-e-vem no lusco-fusco. Como se as palavras compostas sugerissem um ritmo, andante mosso.

Só aos poucos, muito aos poucos, uma sugestão de melodia tende a emergir. É preciso apurar os ouvidos, não como quem quer ouvir, mas deixando algo se formar a partir do nada. Assim como quem se dispõe a deixar o sono chegar, sem procurá-lo.

O que ouço é um ruído de gente, um falatório, o conjunto de vozes da multidão, em ondas. Essa é a melodia, o coro ondulando em variações aleatórias. Haverá uma procura do uníssono inalcançável?

Tento deixar que uma das vozes se destaque. Existe ali uma coisa importante a ser dita. Curioso, um sussurro se impõe, contra todo o esperado. Como pode um quase silêncio sobrepor-se ao ruído? A indagação me paralisa e percebo: o frade murmura. Ele reza.

Entendo agora. Desde criança escuto a oração do frade. A revelação é, a um só tempo, terrível e apaziguadora. Aguardo um instante, para me certificar da continuidade da vida. A morte evitou me levar no momento da epifania. Permaneço vivo, esse misto de expectativa e desconforto.

A revelação durou só um instante. Resta, permanente, a escuta da prece. Quando chego ao máximo silêncio consigo discernir uma ou duas palavras. Anoto-as, sem horizontalidade, num caderno sem pauta e sem margem. Examino então o vocabulário disperso e espero que dali emerja um sentido. Pode acontecer hoje ou nunca.

Vislumbro o frade sob a luz de uma rosácea. O vitral dá uma coloração tênue ao cinza da túnica. Tento discernir suas feições, mas há o capuz, a preservar o mistério necessário. Cada vez que tento apreendê-lo está num canto diferente da nave. Errante, ele ora. 

O frade me intriga. Não sei se me conhece ou mesmo se sabe que existo. É possível que tenha apenas uma ideia nebulosa. Recíprocas nem sempre são verdadeiras: a rigor, não há garantia alguma de que eu signifique alguma coisa em seu universo. Tenho ímpetos de interpelá-lo, escancarar minha concretude, mas como e quando, se a reza não para?

Posso gritar, mas tenho medo. Se a ladainha for interrompida a fronteira entre os mundos será desfeita. Serei engolido pela catedral, retalhado em cores por seus vitrais, diluído nas vozes polifônicas.

Talvez seja o prazer supremo. Pensarei nisso.