Luiz A G Cancello
Já participei de algumas discussões a respeito de as coisas mudarem de nome. Algum dia o acolchoado passou a se chamar edredom, o estojo do violão virou bag, ceroulas saíram do plural e hoje se chama(m) minhocão, o laptop metamorfoseou-se em notebook, e vai por aí.
Em 2007 escrevi um livro, “Dias de Cão”. Mandei-o para editora e recebi um telefonema (isso ainda existe?) do revisor:
— Meu caro, “creme rinse” já era. Agora é condicionador.
Pois o xampu e seu companheiro inseparável, o condicionador, até hoje me causam problemas. Recentemente fui à farmácia para comprar xampu, que quase escrevo shampoo, como antigamente. Cheguei a uma prateleira linda, como potes de mil formatos e cores. Coloquei os óculos, é bem difícil distinguir as letras pequenas, onde estão escritas as maravilhosas propriedades dos cosméticos modernos.
Eu queria apenas um pote onde estivesse escrito “cabelos normais”. Se não me engano, havia três tipos de xampoo, ou shampu, ah, xampu (fico brincando com a forma, até que o corretor ortográfico aceite): “Cabelos oleosos”, “cabelos normais” e “cabelos secos”. Não é mais assim.
Talvez vocês, que estão lendo, perguntem onde andava eu durante todo o tempo que as coisas foram mudando. Não sei responder, mas percebo um padrão interessante. A gente não nota as mudanças passo a passo, conforme vão acontecendo. Um dia o conjunto de alterações salta aos olhos e de repente temos de dar conta da revolução.
Eram tantas as opções que chamei a atendente e pedi algumas explicações. A moça foi muito paciente, mas não consegui enquadrar o meu cabelo, até agora simplesmente “normal”, naquelas tantas categorias. Desisti e, num arroubo machista e conformado, voltei pra casa e pedi à minha mulher:
— Compra lá o xampu que você gosta. Eu uso qualquer um.
— Mas você tem de usar um adequado ao seu cabelo.
— Todos são. Meu cabelo é muito eclético.
Ela fez um ar resignado, eu também e não falamos mais nisso.
Uns dias depois fui tomar banho e encontrei quatro frascos de xampu no banheiro. Um deles era translúcido, ou outro era verde, outro era roxo e um quarto de uma cor indefinível, minha mãe diria cor de burro quando foge, mas ninguém mais fala assim. Fui cheirando experimentando um a um. Quando saí do banho disse pra minha companheira:
— Legal os xampus. Só não gostei daquele meio escuro, de uma cor que eu não sei dizer. Não faz espuma.
— O terceiro ou o quarto no apoiador?
— O quarto.
— Aquilo não é xampu, é condicionador.
— Mas não está de cabeça pra baixo.
— Nem todos os condicionadores são de cabeça pra baixo.
Pronto. Eu já havia me acostumado, depois da estranheza inicial, isso há bastante tempo, que os sucessores do creme rinse têm uma tampa larga, servindo de base para sua posição invertida. Tinha até achado a ideia interessante, fica mais fácil de fluir o líquido espesso, a prática de fato justifica a mudança. Mas agora me aparecia esse condicionador à moda antiga, de cabeça pra cima, virando meu mundo do cabeça pra baixo.
— Será que ninguém padroniza essa merda?
— Não seja grosso. O mercado moderno é muito exigente, tem de haver produtos para todos os gostos.
— Desculpe. Tá certo. É um problema de adaptação ao capitalismo tardio.
— Deixa de ser ranzinza.
Vivi a maior parte da minha vida onde os cabelos se dividiam em três categorias óbvias, como já disse. Voltei ao banheiro, agora com os óculos, para ler os rótulos. Seriam os mesmos da farmácia? Já não me lembrava, mas achei palavras incríveis: Brilho extremo, pH neutro – fórmula pura, hidratação reparadora, tratamento cosmético intensivo, queratina e oliva – reconstrutor. Fiquei atônito. Voltei para a sala.
— Você sabe mesmo pra que serve cada um daqueles xampus?
— Claro que sei. Tá escrito neles, ué.
O errado sou eu. O dinossauro, um ser pré-histórico. Desatualizado. Um homem de cabelos normais, vejam só que aberração. Não há nada a fazer, é a vida, a evolução, o progresso.
— Que xampu você acha que eu devo usar?
— Ah, isso é uma coisa muito pessoal. Só você pode saber.
Uma coisa pessoal. Íntima, talvez. Penso em procurar um coach para cosméticos, acessar um blog de xampus, ou assistir a alguma palestra motivacional no youtube, quem sabe as palavras de um CEO me deem um gás para escolher o produto certo para meus cabelos errados. De repente sou tomado por um enorme desalento, parece que faço parte de um delírio coletivo.
Ficar velho deve ser isso, um tropeçar constante em obstáculos pequenos. Perceber que o mundo ficou mais complicado e cansativo, sentir a alma esvair-se nos detalhes, ali onde mora o demo.
Vou à janela procurar o horizonte, na busca insensata por um antídoto.