Luiz A. G. Cancello
Pegou o telefone, discou o número e iniciou o cumprimento da tarefa:
— Bom dia, dona Fabíola.
— Bom dia.
— Em primeiro lugar, quero dizer novamente o quanto senti a morte do meu amigo querido. Como já expressei nos funerais, meus sinceros pêsames. Foi uma perda terrível. Imagino o que a família está passando.
— Ah, eu sinto muito a falta dele. É triste demais.
A fala não foi convincente. A mulher parecia quase brava. Entre brava e zombeteira, talvez, jamais emocionada. Mas não era caso de questionar sentimentos.
— Bem, dona Fabíola, temos de ir aos fatos. Como sabe, eu era muito próximo do Alfredo, durante anos trabalhamos juntos.
— Beberam e farrearam juntos, também.
— Por favor, não é hora de começar uma discussão. A senhora e a minha ex-mulher nunca se aproximaram, uma sempre achou que o marido da outra era má companhia. Poderia ter sido diferente, mas agora isso é passado.
Neste momento o homem vacilou, embargou-lhe a voz, pigarreou, seguiu:
— Provavelmente você está estranhando este telefonema.
— De fato. E deve haver alguma razão para me chamar de “você”, há pouco me chamou de “senhora”.
— Bem sei que não somos íntimos, mas se temos de tratar de assuntos íntimos de seu falecido esposo, muita formalidade talvez dificulte as coisas.
— Que assuntos são esses? Fale logo, não me deixe nervosa. Ele tem outro filho por aí? Fez alguma falcatrua?
— Não, não. Fique sossegada. Na verdade, ele me nomeou seu testamenteiro, digamos. Testamenteiro virtual.
— Mas… por que não eu ou a filha, que já tem 28 anos? E que virtual é esse? Não estou entendendo nada.
— Já vai entender. As providências a tomar, em caso de morte, estão num arquivo do computador pessoal dele. Minha incumbência é apenas fornecer-lhe a senha.
— Eu não sei lidar com essas máquinas.
— Ele me contou. Disse que sua filha lida. Mas eu prefiro que a senhora anote a senha.
— Você não pode ligar depois, quando a Laurinda estiver em casa?
— Acho que prefiro dizer para a senhora. Para você, se não se ofender.
— Não me ofendo. Vamos resolver o assunto. Vou pegar papel e caneta.
Passaram-se uns dois ou três minutos. Quem pusesse o fone no ouvido perceberia que o amigo do falecido tinha a respiração um tanto alterada.
— Desculpe a demora. As coisas aqui estão meio bagunçadas, como você deve imaginar. Diga.
— Pois não. Em primeiro lugar, o arquivo está no diretório raiz.
— Onde?
— No diretório raiz.
— Vou anotar, mas não sei o que é isso. Ele sempre se disse um radical. Pode ser algum simbolismo?
— Não creio. Colocar arquivos no diretório raiz facilita o acesso. Deve ser só isso.
— E qual é a tal senha?
— Bem… é “EsFíncter”. A letra “E” e a letra “F” são maiúsculas.
Por um momento nada foi dito. Um ouvia apenas o hálito do outro. Por fim a mulher falou, afinal era mesmo a vez dela:
— Mas a troco de que essa palavra, meu Deus? Até me constrange dizer, mas aqui em casa ele não era dado… a essas práticas, vamos dizer assim.
— Por favor, Fabíola, não é necessário explicar nada. Só ele poderia dizer as razões. É recomendado escolher palavras que não possam ser adivinhadas facilmente.
— Mas eu vi na televisão a entrevista de um psicólogo sobre quem usa computador. Ele disse que, se pudéssemos saber as senhas das pessoas, conheceríamos muito sobre a personalidade delas.
— Pode ser, nunca pensei nisso. Seu marido era um gozador, um cara bem humorado, talvez tenha escolhido essa palavra para chocar. É bem o estilo dele.
— Pelo jeito, Antonio, você conhece esse cara melhor do que eu. Só se ele fosse bem humorado na rua. E esse “F” maiúsculo?
— Fique calma, não se exalte. Sempre se alterna letras maiúsculas e minúsculas, para dificultar a invasão. Ainda faltam algumas informações.
— Ai, agora essa, a invasão do esfíncter. Era só o que me faltava. Fico imaginando o que pode significar o “F”. Maiúsculo, ainda por cima. Mas diga.
— A palavra “EsFíncter” é seguida de dois ou três números.
— Pode falar.
— Calma, não é rápido assim. Vou explicar. São os algarismos ASCII da terceira letra do nome de arquivo.
— O que é isso? Está ficando muito complicado.
— O Fredo não era uma pessoa simples. Segundo o ASCII, o American Standard Code for Information Interchange, a cada caractere do teclado corresponde um número. Mas posso facilitar a tarefa. Como o nome do arquivo é “Textamento”, com a primeira letra maiúscula e, em vez de “s” a terceira letra é “x”, o código é 120.
— Mas por que esse número? E “Textamento”, que idéia!
— É possível que tenha escrito um texto, mesmo, algo menos formal e estereotipado que um testamento padrão. Faz o gênero dele.
— Mas aqui em casa ele era formal em muitas coisas. Estou muito intrigada com essas revelações. Agora me veio à cabeça que 120 é o número da casa em frente à nossa. Eu sempre cismei que ele olhava para a vizinha. Será possível?
— Não adianta nada ficar imaginando coisas. O número pode ser, por exemplo, o quíntuplo de 24. Isso é só um exemplo, entendido? Uma ilustração. A cabeça da gente produz idéias estranhas o tempo todo, veja só, acabo de pensar essa asneira. Não se deixe impressionar. Você anotou tudo?
— Tudo bem. É só um exemplo, espero. Anotei tudo. Mas não sei se é conveniente a Laurinda ler o testamento, já que ela vai ser a primeira a ver o texto. Nem imagino o que pode estar escrito.
— Peça a ela para abrir o arquivo e não ler.
— Não posso fazer isso, afinal são os desejos do pai dela.
A conversa ficou em suspenso. Os interlocutores pareciam buscar uma solução. Que fazer com os desejos do Alfredo? De repente a mulher teve uma idéia. Falou rápido, num tom que misturava o suplicante e o autoritário:
— Vem aqui em casa fazer isso para mim, Toninho.
— Até poderia, mas a Laurinda pode ficar melindrada.
— Você chega num horário em que ela esteja trabalhando e imprime o testamento. Depois eu digo que o pai deixou o papel num envelope.
Antonio foi andando, a passos lentos, até o apartamento da viúva, que ficava no mesmo bairro. As ruas eram agradáveis, arborizadas. O dia nublado, sem sinais de chuva, estava propício para uma caminhada matinal. O homem foi procurando a leveza, respirando fundo e lentamente, para dissipar o nervosismo. As recordações das conversas de bar com o falecido apareciam a todo o momento em sua cabeça. Não conseguia esvaziar a mente, como lia, às vezes, em algumas revistas que falavam sobre as técnicas orientais, cuja prática sempre adiara e agora faziam tanta falta.
Chega ainda ressabiado ao prédio do amigo. O que vai encontrar lá? Há muitos cenários possíveis. Os happy-hours com o falecido, os dois chegando em casa tarde, às vezes com o teor alcoólico bastante perceptível ao olfato, deixaram marcas nas mulheres. A dele, por esse e outros motivos, um dia saíra de casa para nunca mais voltar. Fabíola agüentara o tranco até o fim. Mas tudo isso soava longínquo. Agora teria de enfrentar a situação. Naquele apartamento todos sabiam que ele era o melhor amigo de Alfredo. Como pessoas educadas, iriam recebê-lo com cortesia. Ademais, fora chamado para resolver um problema, havia certa autoridade na visita. Lamentava que Laurinda estivesse fora, era uma bela moça, gostaria de vê-la, mas estava lá para tratar de outros desejos, ou dos desejos de outro.
— Antonio, entre e sente. A casa é sua. Você tem razão, o que passou, passou. Sem ressentimentos, ok? Vou trazer um café e vamos ao computador. Meu marido morreu há dois dias. Às vezes sinto que ainda está vivo, outras vezes parece que se foi há muitos anos. A tristeza se alterna com alívio, Deus me perdoe.
O homem ficou espantado com tal abertura de alma, não sabia o que responder, disse apenas que a vida é mesmo assim, ou a morte, que seja, quando a gente vai ficando mais velho perde certas vergonhas, entre elas a de falar sobre sentimentos confusos, já se sabe que a mente humana não é linear e muito menos coerente, mas esse resto não disse, eram fragmentos de conversas que tivera com Alfredo, filosofando entre as cervejas. De repente via Fabíola como uma velha amiga, a quem vai socorrer numa dificuldade.
Senta-se, enfim, na frente do computador. A máquina ficava espremida no corredor que saía da sala e dava para os dois quartos e o banheiro. Acomoda-se na cadeira, ela traz a banqueta da penteadeira e fica ao lado dele. Antonio abre o Word e escreve a senha, sob o olhar ávido da mulher, que fica decepcionada e fala, antes que o outro tecle ENTER:
— Mas só aparecem asteriscos! Onde está a palavra que você disse?
— Esfíncter?
— Esse mesmo.
— Ah, os caracteres nunca aparecem, para evitar que alguém se aposse da senha, por estar olhando a tela.
— Não sabia. Não tenho senha de nada, só uso cheques. Nem tenho cartão de compras. O Alfredo insistiu muito para que eu usasse dinheiro eletrônico, como ele chamava, mas sempre recusei. Não tenho jeito para essas máquinas de apertar botão, acho uma coisa muito fria. Você tem muitas senhas?
— Muitas. Tenho a senha do programa de e-mail. Trabalho com dois bancos, e cada um deles tem senhas para acessar a internet, para o cartão e para movimentar dinheiro através da rede. Além disso, compro muitas coisas em lojas virtuais, tenho senha em cada uma delas.
— Nossa! Como você decora tudo? Se alguém souber todas as suas senhas, vai saber tudo sobre a sua personalidade? Foi o que aquele psicólogo disse.
— Não sei nada sobre isso. Se alguém soubesse todas as minhas senhas poderia me levar à falência. Isso é certo.
— Acho muito misterioso isso de ter várias senhas. Parece como as palavras mágicas das lendas, como “Abre-te, Sésamo”, do Ali Babá, ou “Shazam”, do Capitão Marvel. Pensando bem, talvez a informática não seja tão fria. Você acha que o Alfredo também tinha?
— Tinha o quê?
— Muitas senhas.
— Claro. Ele também usava a internet para várias coisas, você sabe.
— Nunca me interessei por isso. Coitado do Alfredo. Já faz tempo que ele me parecia tão desinteressante! Se ao menos eu soubesse que ele tinha tantos mistérios, alguma coisa poderia ter sido diferente.
— A senha não é um mistério, é apenas um jeito de proteger sua privacidade. E seu dinheiro. Mas escuta, não é melhor abrir logo de uma vez esse arquivo e imprimir o testamento?
— Ok, Toninho. É que eu fiquei impressionada com esse negócio das senhas. Proteger a privacidade é um assunto delicado, não é? E agora vou saber os últimos desejos do meu marido. É estranho, nem vou poder discutir com ele, se não concordar com alguma coisa. Pra falar a verdade, tenho medo do que vai estar escrito aí.
—Acho que não é para ter medo, Biloca. Vamos fazer isso de uma vez.
— Você me chamou de Biloca?!
— Chamei. Desculpe se a ofendi.
— O Alfredo só me chamava assim em ocasiões muito particulares. Nossa, o que vocês conversavam naquele maldito bar?
Os lábios da mulher tremiam.
— Ele sempre se referia a você desse jeito, e agora me escapou o apelido.
— Mas ele só me chamava assim quando queria cama. Isso não é jeito de proteger a privacidade! Se ele tivesse mesmo uma palavra mágica só nossa, teria usado “BiLoca” como senha. Poderia ter usado o “L” maiúsculo, não me importaria.
O homem já demonstrava impaciência, os pés inquietos, o dedo pronto para espancar a tecla ENTER.
— Fabíola, por favor, vamos abrir este arquivo e imprimi-lo. Depois disso vou embora e deixo você com o texto.
— Ah, Toninho, isso não. Não me sinto à vontade para ficar a sós com os desejos do Alfredo, aquele sem-vergonha, esteja onde estiver. Quero que você leia o papel comigo. Preciso de um apoio.
— Não me sinto à vontade. É mais conveniente que leia isso sozinha.
Ela pensa um pouco e acha o argumento:
— Talvez contenha instruções bancárias, aí vai ser preciso lidar com outras senhas, você é de confiança, pode me ajudar. Está nomeado meu procurador.
Ouve-se um barulho, é a porta da frente que se abre. Laurinda entra, o rosto está contraído, a respiração ofegante. Compõe-se e faz uma expressão de surpresa de ver ali o “tio” tão criticado, parece que todos estão em bom entendimento, a testa franzida interroga o ambiente. A uma pergunta de Fabíola, responde que sentiu-se mal no escritório, a perda do pai é muito recente, não deveria ter ido trabalhar. Antes de a moça pedir explicações, a mãe diz que Antonio veio fazer uma visita de pêsames. Ele a ajudava a excluir do computador arquivos pessoais do pai, agora inúteis. Mas, depois de pensar um pouco, resolveu contar a verdade.
Talvez por estar tão triste, quem sabe por magoar-se — não seria ela a mais indicada para a tarefa? —, possivelmente para dar tempo ao tempo e entender aquele estranho encontro, a moça ouviu a história e não fez comentários. Foi à cozinha, pegou um banquinho de fórmica e sentou-se perto dos dois, olhando para a tela. Ele ficou espremido entre as mulheres, o calor dos corpos lembrava-lhe mais a sensação de febre que uma possibilidade de orgia.
Sem perguntar mais nada, Antonio martelou o ENTER. Era um arquivo pequeno, cabia na tela do computador. O rosto de Fabíola traiu alguma decepção, logo transformada em espanto. A moça arregalou os olhos e ficou estarrecida. Antonio começou a ler o texto e parou, embaraçado. Ali estavam apenas a relação dos três bancos com que Alfredo trabalhava e as respectivas senhas, que eram três dos tantos nomes que popularmente se dá ao genital feminino. Em seguida vinha a explicação do código em caracteres ASCII. Nada dos desejos do Alfredo, ou todos os desejos do Alfredo, quem poderá dizer? Depois do silêncio imóvel, foi o amigo da casa que falou primeiro, tentando colocar firmeza nas palavras:
— Acho que posso explicar. Quando a gente acessa o banco pela internet, tem três chances de errar, antes que o cartão seja bloqueado. Escolhendo três nomes de uma só coisa, mesmo que ele tivesse esquecido a que banco correspondia tal sinônimo, na terceira tentativa acabava acertando. Genial.
Ficou orgulhoso com sua explicação e com a estratégia do amigo, mas não obteve respostas ou comentários. Ninguém o escutava. Os olhos das duas não se desgrudavam da tela, como quem vê a última cena de um filme de suspense. Finalmente apareceram as vozes da família:
— Ó céus, o que esse homem tinha na cabeça?!, disse a mulher.
— Acho que precisamos orar pela alma do papai, rezou quem faltava.
Novo silêncio. A moça começou a murmurar um Pai-Nosso, logo seguida pela mãe. O outro, sem saída honrosa, acompanhou a ladainha. Lá pelo meio da oração lembrou-se do tal psicólogo e teve uma vontade incontrolável de rir. Prendeu a gargalhada na garganta, com recursos que nem seus possíveis mestres orientais saberiam descrever, mas a pressão interna fez que o peito soluçasse e a água brotasse dos olhos. As mulheres foram atingidas pelas lágrimas e, pouco a pouco, puseram-se a chorar, por saudades, pena ou vergonha, vá alguém saber os verdadeiros motivos. E assim Alfredo foi pranteado por seu círculo mais íntimo.
— Grande Fredinho!, dizia de si para si o Antonio, voltando para casa mais leve, aproveitando a sombra das árvores, perto do meio-dia.