Salvatierra, de Pedro Mairal

Título: Salvatierra
Autor: Pedro Mairal
Editora: Todavia, 2021

Salvatierra é uma obra excepcional. Encantou-me desde o princípio, uma leitura difícil de largar.
Logo no início já ficamos sabendo que o personagem principal, que dá nome ao livro, é mudo, por conta de um acidente.
Salvatierra tinha uma característica muito própria: desde cedo, na vida, pintava seu cotidiano. Essa tarefa rendeu um quadro enorme, uma tela enrolada de uns 4 mil metros, enfurnada num galpão, que seus dois filhos vêm resgatar, depois do falecimento do pai.

“Se eu disser que meu pai levou sessenta anos para pintá-lo, parece que ele se impôs a tarefa de completar uma obra gigantesca. O certo seria dizer que ele o pintou durante sessenta anos.”

A história é contada pelo filho mais moço, que, assim como o irmão, quer dar um destino digno a uma obra tão esdrúxula. O rapaz nota, ainda, que falta um pedaço do quadro, pois o pai pintava todo dia e anotava a data no verso da tela. Não apenas um pedaço, mas todo um ano.
A reconstituição da vida do pai a partir do quadro é notável, pois o autor, com seu poder descritivo, leva-nos a imaginar em detalhe a imensa obra.
A procura do pedaço faltante dá ao relato um sabor detetivesco. O filho mais velho não está tão interessado em esmiuçar a vida do pai, mas aquele que nos conta a história quer chegar às últimas consequências, e para isso se empenha na busca das imagens perdidas.
Os fatos se passam em Barrancales, uma pequena cidade imaginada, na beira do rio que separa a Argentina do Uruguai.
Os irmãos moram em Buenos Aires, foram jovens para a capital, por isso não conheciam a maior parte da obra do pai. Nem sempre podem estar na cidadezinha para dar conta de suas tarefas profissionais, o que dá uma interessante cadência temporal ao livro.
São duas histórias que se entrelaçam: o destino a ser dado à obra e a procura do pedaço faltante. O resultado é excepcional. Mairal dá ao leitor um texto brilhante e uma aula de Literatura.
É fascinante ver o filho descobrindo um pai, com quem não podia conversar oralmente em vida e de quem se separou na juventude, aparecer pouco a pouco por meio das imagens pintadas, meio reais e meio oníricas, revelando fatos e segredos insuspeitados.

“Salvatierra queria dar a impressão de que, uma vez incluída na pintura, uma criatura podia atravessar o espaço pintado, avançar pela tela e reaparecer. Ninguém está protegido. Nem mesmo as cenas na privacidade de uma casa conseguem estar isoladas ou seguras, há sempre alguém à espreita na penumbra, espiando, ou um homem que dorme enquanto a fauna doentia dos seus pesadelos vai entrando pelos espelhos do quarto. Não existe “dentro”, não existe casa, todos estão desamparados nesse território de cores que nunca termina.”

É interessante notar o papel que a tecnologia terá no desenrolar da trama. Mas que isso é spoiler.
Um grande livro do autor argentino.