Tópicos para uma aula inaugural
Luiz A. G. Cancello
Não pedimos para nascer. Encontramos um mundo já construído pelas gerações que nos precederam. Não temos culpa pelas mazelas desta época, nem glórias por suas conquistas, mas podemos ter orgulho ou vergonha dos feitos de nossos antepassados. Enquanto estivermos vivos, no entanto, teremos sempre alguma responsabilidade sobre este nosso tempo e sobre os rumos que humanidade vai tomar. Pois “sou Homem, e nada do que é humano me é alheio”, já disse um filósofo(1). Isto parece muito grandioso, mas é uma das poucas maneiras de dar um sentido maior às escolhas que fazemos na vida. E estamos aqui com um considerável número de pessoas que estão elegendo a Psicologia como algo importante para seu destino. Este fato merece algumas considerações.
Vocês estão neste curso por diferentes motivos. Alguns por já conhecerem algo do campo que escolheram estudar, outros na esperança de entenderem melhor os seus semelhantes, talvez muitos com a finalidade de compreenderem a si próprios. De qualquer modo, para que terminem o curso, é preciso que haja um certo entusiasmo, uma vontade de aprender, a crença de que sairão da faculdade com algo a mais do que têm hoje, em termos de conhecimento e sensibilidade para os fenômenos humanos. A missão do professor é catalisar esse impulso inicial, orientando-o na consecução de seus objetivos. Assim posto, o assunto adquire um contorno bastante atraente, cada qual fazendo seu papel, como se o mundo fosse totalmente harmônico. Mas o aluno não vai ter apenas prazeres ao aprender (nem o professor ao ensinar). Marcelo Coelho(2), diz que seria melhor entender o sucesso como fruto não da paixão, mas do vício. Vício de estudar, de saber. Nas palavras dele: “Minha escola ideal seria aquela em que se ensinasse mais o sentido de cada descoberta científica, a história de cada fórmula matemática, a “paixão”, ou o vício, de cada grande homem, e menos o resultado de cada coisa – resultado este a ser reproduzido em exercícios de química, testes de matemática, questionários de história ou geografia. A escola, para mim, deveria ensinar o vício de conhecer, pelo exemplo do vício dos que conheceram.” O que não está dito, mas creio que subentendido, é que esta atitude deve conduzir o aluno a participar da aventura humana – ou seja, de participar das conquistas que o homem tem feito, ao longo da História, para ter uma existência cada vez mais vasta e significativa.
Quando falta um sentido maior, os sentidos tendem a assumir a primazia. Explico: a sensação, que muitos chamam de “adrenalina” e nomes correlatos, passa a ser o objetivo em si mesma. A emoção de surfar, de correr de motocicleta ou de pular de asa delta pode se tornar um fim em si mesmo, obscurecendo outras possibilidades mais sutis de realização. Tomando um exemplo negativo, o limite sensorial experimentado no consumo de drogas muitas vezes passa a ser o objetivo último da vida. Se não for capaz de constituir um futuro, a sensação é má conselheira.
Nada tenho contra a sensação. Certamente os marinheiros da Época dos Descobrimentos, ou Neil Armstrong ao pisar na Lua, tiveram sensações intensas. O pajé da tribo, quando ingere suas drogas para se comunicar com os deuses e operar curas místicas, também deve estar com altos níveis de adrenalina. Esse estado emocional intenso fazia parte da busca dos objetivos de cada uma dessas pessoas. Seria ótimo que os alunos tivessem sensações intensas a cada descoberta. Mas a sensação “solta no ar”, sem uma finalidade que a justifique, pede cada vez mais sensação. E, no limite, o único fim possível é a morte.
Por outro lado, a pura instrumentalização das ações de aprendizagem, sem um entusiasmo que lhes dê o sal, torna a existência insípida. Vou dar alguns exemplos. Quando aprendi a fórmula da equação de segundo grau, de Baskara, lembro-me do professor enfatizando a genialidade do árabe, que, aparentemente sem mais aquela, “resolveu” somar e subtrair “b” num determinado passo da demonstração, para chegar ao resultado que perseguia. No livro de um de meus filhos li essa passagem assim: “Somando-se e subtraindo-se o elemento neutro ‘b’… “, como se tal operação fosse a coisa mais comum do mundo. Esse processo de banalização da realidade esvazia o que há de grandioso nas realizações humanas.
Um outro exemplo pode ser dado em relação à Geometria Analítica, que só foi possível se concebida em dado momento da História, quando Descartes teve a idéia genial de construir as coordenadas que até hoje levam seu nome – cartesianas. O filósofo francês foi o primeiro a conceber um centro totalmente arbitrário, que pode estar onde o homem quiser. Isto só foi possível quando a humanidade, no final da Idade Média, começou a se libertar da idéia de que o Centro do Mundo teria sido indicado por Deus nas Escrituras. O livro “A Ilha do Dia Anterior”, de Umberto Eco, aborda essa questão de forma brilhante. Tal fato, de enorme relevância histórica, acaba passando desapercebido, quando se tem de fazer 200 exercício de fixação de meros mecanismos matemáticos, tornando a ciência uma coisa “fria”. Não há entusiasmo que resista.
Saindo da matemática e enveredando pelas Ciências Humanas, evoquemos uma passagem de Hobsbawn(3):
“As questões mais dramáticas e controvertidas das ciências sociais e humanas guardavam estreita relação com a crise intelectual fin-de-siècle do mundo burguês. (…) De maneira geral, tratava-se das novas dúvidas a respeito dos pressupostos do século XIX em relação à racionalidade humana e à ordem natural das coisas.
É na psicologia que a crise da razão fica mais óbvia, ao menos na medida em que ela tentava se conciliar não com situações experimentais, mas com a mente humana como um todo. O que restaria do próspero cidadão visando a objetivos racionais através da maximização do lucro pessoal, se esse processo se baseava em uns quantos “instintos” como os dos animais (Mac-Dougall); se a mente racional não passava de um barco navegando nas ondas e correntezas do inconsciente (Freud); ou mesmo se a consciência racional era apenas um tipo especial de consciência, “ao passo que em sua totalidade, dela separadas pela mais frágil película, residem formas potenciais de consciência totalmente diferentes” (William James, 1902)? Qualquer leitor da grande literatura, qualquer apreciador da arte ou pessoas introspectivas amadurecidas já estavam, é claro, familiarizados com tais observações. Contudo, foi agora e não antes que essas observações se tornaram parte do que se autodenominava o estudo científico da psique humana.” (grifos nossos)
Pergunta-se: é possível entender a Psicologia sem estar familiarizado com o mundo em transformação onde surgiram, pela primeira vez e de forma amplamente difundida, conceitos que até hoje teimam em permanecer nos manuais acadêmicos? A leitura de uma teoria psicológica em compêndios “des-historicizados” leva o aluno tão somente a decorar uns quantos tópicos e a adotar, como crença pessoal, uma “linha” de trabalho que lhe pareça mais simpática. Tal escolha não tem peso; por processos semelhantes elegemos nosso time de futebol preferido.
Sem a paixão de participar da aventura humana, só poderemos ter ambição pessoal, jamais um sentido mais amplo que transcenda o nosso egocentrismo. Este quadro leva a um ponto onde o sujeito, em torno da meia-idade, ao ter conseguido “tudo o que queria”, pára, olha para trás e pergunta: “E daí?”. É uma crise psicológica terrível, e muitos jamais se recuperam do choque.
Quando não há sentido no horizonte – como se a história estivesse em seu ocaso – a depressão começa a se instalar. Algumas pessoas são mais suscetíveis à depressão do que outras, mas o fato é que esse tipo de patologia tem aumentado, sendo hoje, no mundo, a segunda doença que mais incapacita para o trabalho.
Se não fizermos alguma coisa para combater esse cenário, em pouco tempo a situação ficará insustentável – não apenas no nível individual, mas nos próprios sistemas de saúde e previdência social. Aliás, isto já está acontecendo.
O sentido se conjuga com objetivos e entusiasmo – adrenalina, se quiserem. Como já observamos, é preciso que se desenvolva o gosto pelo saber. Talvez com essa intenção, há uns vinte anos atrás alguns cursinhos desenvolveram o conceito de professor show-man, na esperança de que esses profissionais trouxessem a motivação que começava a faltar para os alunos. Essa é uma aprendizagem instrumental, descartável, dirigida apenas ao objetivo de passar no vestibular. Mas o modelo de tais cursinhos tende ao esgotamento. Na Faculdade exige-se um compromisso com o saber. Ou o gosto pelo estudo é plantado de maneira consistente no aluno, passando a fazer parte de sua própria natureza, ou não é possível ser sustentado pelo mais hábil dos animadores de auditório.
Este professor, quase um artista de teatro, é produto de um época em que a escola compete com outros meios de comunicação aparentemente mais poderosos. Video-games, video-clips, filmes de ação e som de discoteca, só para citar alguns exemplos, arrebatam o espectador; não há como ficar indiferente à intensidade, rapidez e fragmentação dos estímulos visuais e auditivos. A mensagem se impõe, por sua força, a um receptor quase passivo, trazendo-lhe sensações intensas e fugidias.
O processo descrito é muito diferente da leitura. Digamos que alguém se proponha a conhecer a obra de Guimarães Rosa. Precisará vencer o estranhamento inicial da linguagem usada pelo autor e familiarizar-se com o cenário onde se passam os romances, atitudes que demandam dedicação e tempo frente a um estímulo “fraco” – as letras no papel – se comparado às luzes e ao ruído dos media anteriormente citados. Além disso, se quiser aprofundar-se no estudo, terá de pesquisar as características da época em que o escritor viveu, verificar quais foram suas influências literárias e tantas coisas mais. Ler é um procedimento ativo; é preciso ir de encontro ao texto. A sensação virá a seu tempo, mais sutil, mais profunda, deixando na memória cenas e emoções que permanecem como parte da formação do indivíduo.
Para que haja um aprendizado consistente não há outra alternativa senão a leitura atenta (e muitas vezes demorada!) dos textos básicos da matéria que se pretende estudar. É necessário vencer a inércia, esquecer por alguns momentos a parafernália sensorio-eletrônica e mergulhar no livro.
Outro ponto a ser destacado nesta caminhada que vocês iniciam é a pressão que a sociedade, em geral por intermédio da família, faz a seus membros mais aquinhoados para que façam um bom curso e “vençam na vida” – em suma, para que ganhem (muito) dinheiro. Aqui está implícita uma outra afirmação: a de que riqueza material traz felicidade.
Todos sabemos que não é só isso o que contribui para o bem-estar de alguém. Essa consciência do valor relativo do dinheiro como promotor de uma vida feliz fez com que se desenvolvesse o conceito de “qualidade de vida”. Já se fala que o psicólogo tem como objetivo melhorar a qualidade de vida das pessoas. Uma rápida procura na Internet revela coisas surpreendentes. Anúncios de imóveis (principalmente flats e condomínios fechados), automóveis, hospitais, escolas e pensões para idosos, e também as Home Pages de algumas cidades (por exemplo, Curitiba), falam em “qualidade de vida”, que assim torna-se um produto banalizado e vendável. Não é por acaso que o poeta Bruno Tolentino(4) disse que o sonho da burguesia brasileira resume-se a ter um emprego público com aposentadoria integral, morar em condomínio fechado e ter plano de saúde.
O que se nota nesses anúncios é uma grande ênfase no conforto material e nas chamadas “mordomias”, na segurança e tranqüilidade (objetivos dos consumidores de 35 a 50 anos, compradores em potencial) e na ecologia (que é o chamariz da moda, as “áreas verdes”). Pouca atenção se dá às pessoas com quem se vai conviver, mas está implícito que, consumindo esses bens, o comprador estará entre seus iguais, em geral “pessoas bem sucedidas”. Quanto a outros tipos de realização – artística, científica, espiritual (alguém já viu condomínio fechado com ateliê, laboratório ou capela?), nada se declara.
Neste ponto é oportuna a definição que nos traz Abraham Moles(5): “A ‘qualidade de vida’ é uma noção difusa e mal definida que se propagou nas sociedades de consumo e nas instituições (ONU, UNESCO, Conselho da Europa…), quando os políticos se deram conta de que era indecente prometer a felicidade aos homens… Não se procura a felicidade; como a desgraça, encontramo-la por acaso.”
Não podemos medir o quanto somos ou seremos felizes baseados apenas em estatísticas oficiais. Podemos, no entanto, criar condições favoráveis ao aparecimento da felicidade, se fizermos de nosso trabalho algo maior que um simples ganha-pão.
Sabemos que o mercado de trabalho cada vez mais se estreita, gerando no mundo um enorme contingente de excluídos. O fato de uns poucos terem ocupações lucrativas, enquanto a maioria tende à miséria, é problemático por diversas razões. Uma delas é prática: o próprio mercado consumidor, nessa estrutura de privilégios, tende a desaparecer. Para quem produzirão os poucos aquinhoados? Mais uma objeção, de uma outra natureza, se impõe: é justo que a distribuição das riquezas seja tão desigual? E a pergunta inevitável: o que temos a ver com isso?
A atitude mais cômoda é desfrutar das mordomias que (ainda) nos restam e alienar-se de todo o processo social. Resta saber se é possível dormir em paz nessa situação – que, a médio prazo, é insustentável. Mas há a possibilidade de, mesmo em pequena escala, agir para que as coisas sejam mais justas. Fica posta uma opção entre o egocentrismo e a solidariedade, entre o individualismo exacerbado e a participação nos rumos da aventura humana. É uma escolha ética a que o psicólogo não poderá se furtar.
Outro sintoma destes novos tempos são as velhas soluções mágicas, formas “alternativas” de procurar ser feliz. No mundo todo vendem-se livros de auto-ajuda como nunca se venderam antes, todos prometendo a felicidade em cinco lições. Cristais, tarô, astrologia e práticas correlatas ganham espaço na mídia e na cabeça das pessoas. Prometem-se resultados rápidos e um caminho sem percalços, como se fosse possível eliminar de vez o sofrimento. Mas tantas vezes é preciso fazer coisas desagradáveis para que um objetivo importante seja alcançado! O sentido do sacrifício ainda tem lugar na modernidade?
Sacrifício quer dizer sacro-facere, tornar um ato sagrado. E sagrado, na feliz definição de José Miguel Wisnik(6), é tudo o que é essencial, que não é descartável, que não se pode comprar outro exemplar no Shopping.
Quando se estuda, em História do Brasil, que um alferes preferiu morrer a entregar a bandeira para o inimigo, pergunta-se (com admiração!) o que o levou a uma atitude tão extremada. Para nossos propósitos, pode-se dizer que, com seu sacrifício, ele preferiu perder a vida a perder o sentido da vida; pois sua existência, se ele se acovardasse para sair vivo da batalha, perderia todo o significado.
É saudável encarar a época da faculdade como um passo no processo de aquisição do saber. Algumas vezes é aborrecido, e temos de pensar que vale o sacrifício. Outras vezes é entusiasmante, e isto compensa a época sem atrativos.
Sempre ouvimos dizer que o estudo da Psicologia amplia os horizontes de quem a ele se dedica, que traz ao futuro psicólogo maior “cultura geral”. Isto é verdade apenas em parte. A Psicologia é somente um dos modos (sem dúvida rico e interessante) de encarar o mundo. Surgiu num determinado momento da história, no conjunto das idéias que o homem foi fazendo sobre si mesmo, sobre os outros e sobre as coisas que o rodeiam. É preciso entender as condições de surgimento e desenvolvimento de nosso objeto de estudo, e esta visão transcende a Psicologia. O jurista Norberto Bobbio disse certa vez: “Não é possível ser um bom marxista sendo só marxista”. Parafraseando o italiano, eu diria que não é possível ser um bom psicólogo sendo só psicólogo.
Para alcançarmos o saber devemos estudar muito, e isto significa adquirir uma intimidade com o texto escrito, como já foi realçado aqui. Apesar de todos os recursos audiovisuais e as técnicas advindas da informática, o livro ainda é o instrumento fundamental de transmissão da cultura. Finalizemos com uma passagem de “O Último Cabalista de Lisboa”, de Richard Zimler: “Os livros são criados por letras sagradas. Tal como são os anjos, há quem diga. Desse ponto de vista, pela janela da Cabala, digamos, um anjo não é mais do que um livro a que foi dada a forma celeste… a que foram dadas asas, para usar uma fórmula corrente.”
Bons vôos a todos vocês.
Santos, março de 1999
Notas:
1 – Verso de Terêncio que expressa sentimentos humanistas, em voga no Renascimento. No original: Homo sum: humani nihil a me alienum puto. Segundo Magalhães Júnior, R., o Dicionário Brasileiro de provérbios, locuções e ditos curiosos, Borges e Damasceno, 1977.
2 – Coelho, Marcelo, in “Os viciados do futuro”, Revista “EDUCAÇÃO”, Publicação do SIEEESP – Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino no Estado de São Paulo, nº 194, junho de 1997. Seção “Opinião”, p. 66.
3 – Hobsbawn, Eric, “A Era dos Impérios”, Ed. Paz e Terra, 3ª edição, p. 375.
4 – Entrevista à Revista Veja de 20 de janeiro de 1996, p. 10.
5 – Moles, Abraham A., “Ciência e Tecnologia Hoje”, Nicolas Witkowaki (ed.), Editora Ensaio, 1995.
6 – Wisnik, José Miguel, “o som e a visibilidade”, in Artéria- Santos Revista, publicação da Secretaria de Cultura de Santos, junho de 1992, p. 60.