Luiz A G Cancello
João está na cama e pode escutá-las. As mulheres estão na cozinha, o som se propaga com facilidade. Esta é a casa possível, pequena e comprada depois de muitos anos de trabalho, financiada até os confins dos tempos. “É o nosso castelo”, disse a esposa, quando ele comprou o imóvel. “Um castelo de cartas em cima de um barco no mar revolto”, a imagem lhe ocorreu e ficou calado.
Clara e a filha fazem sua primeira refeição do dia. O cheiro do café, que costuma fazer João levantar da cama, desta vez não é suficiente. Encolhe-se sob as cobertas.
Se ele chegar na mesa vai interromper a cumplicidade das duas. Vão mudar de assunto, fazer caras de satisfação com sua presença. Uma postura nada espontânea. Vai poupá-las desse esforço.
Daqui a pouco uma vai para a escola e a outra para o trabalho. João ama essas mulheres, um amor distante, já não sabe o que falar quando estão juntos. Pergunta a uma sobre os estudos e à outra sobre o serviço. As respostas são educadas. Se tenta falar sobre seus problemas profissionais o assunto morre. À noite as novelas e o Jornal Nacional salvam a família. João sabe que não tem o direito de reclamar, tem uma família estruturada, ganha um bom salário. Segundo os parâmetros aceitos, a julgar pelo IBGE, é um homem privilegiado, de classe média, Elas sabem disso, talvez até o admirem. Acha irônico.
Ontem à noite transou com Clara. É sempre bom. Trocam carícias e palavras, entre amorosas e safadas. Quase tudo se esvai após o orgasmo. Ficam quietos, ainda abraçados, algo permanece por um tempo, ele quer prolongar a sensação, não consegue. Às vezes surpreende lágrimas nos olhos dela. Não entende, sente um desconsolo, tem medo de perguntar o porquê.
Cedo ou tarde precisará ir ao escritório. O corpo pesa, apesar de ser um homem magro. Cuida da alimentação e faz academia. Cultiva a saúde, essa obsessão moderna, para ter uma vida longeva. Envelhecerá em silêncio no sofá da sala, em frente à TV. Ou no quarto, sob as cobertas.
Agora uma delas aperta a válvula da privada, o último alarme antes de sair. João espera a próxima descarga e dá um tempo. Vai encontrar a mesa posta na cozinha vazia, na hipótese de se animar a sair da cama. Quando as duas deixam a casa sente-se invadido por uma paz enorme e violenta, mas dura pouco e logo se transforma em angústia. Tem uma sensação de paralisia, puxa o lençol com dificuldade, como se nadasse sem rumo no ar pastoso, sem bússola ou ampulheta.
O celular, na mesa de cabeceira, toca a musiquinha do WhatsApp, obrigando-o a um movimento mais amplo. Lê um recado de Clara. “Tem queijo mineiro na geladeira, comprei ontem. Beijo meu e da Ju.” Sente os olhos marejarem, a mensagem é tão carinhosa, elas se preocupam com ele, o que mais pode querer? João não sabe se chora por autopiedade ou por júbilo, pensa em levantar, tomar café e entrar no banho, deixando as águas rolarem à vontade. Mas vai ficar na cama só mais um pouquinho. Talvez pela eternidade.