Questões Pós-modernas

Luiz A. G. Cancello

Questões Pós-modernas – I

1.
 Desde que o homem fala, um indivíduo sentou-se frente ao outro para, falando, aliviar-se de sofrimento. Supõe-se que um deles, o agente de cura, detenha alguma espécie de saber (e poder) a respeito do sofrimento humano.

Antigamente, o homem que escutava era ungido pelos deuses; a bem dizer,”não era ele” quem escutava, mas o deus que dele se servia como intermediário. A testemunha da confissão não era o padre, pagé ou xamã, mas a divindade a ele associada.
Modernamente, a unção do escutador não é mais fornecida pelo sagrado. O diploma tornou-se a sagração pela ciência. O Ministério do Trabalho rege o exercício da profissão.
O modo de conceber as coisas também mudou. Falar com um deus e falar com um companheiro humano são, sem duvida, coisas muito diferentes. Um título universitário e uma situação específica diferenciam a conversa do cliente com seu terapeuta daquela conversa com o amigo, no bar da esquina.
2. “Entre outras coisas, um agente de cura (healer) é usualmente uma pessoa para quem um indivíduo que sofre conta coisas; a partir de sua escuta, o agente de cura desenvolve a base para as intervenções terapêuticas. O agente de cura psicológico, em particular, ouve com o propósito de aprender e entender; e, do resultado de sua escuta, desenvolve a base para apoiar, prevenir, consolar, confortar, interpretar, explicar, ou seja, intervir.”

(texto extraído de Jackson, Stanley W., “The Listening Healer in the History of Psychological Healing”, The American Journal of Psychiatry, Volume 1, Number 12, December 1992, pp. 1623)

3.
 “Ora, o inconsciente foi descoberto por Freud , isto é bem conhecido. E, portanto, quando se lê Freud, o descobridor, deve-se singularmente analisar esta afirmação. No seu famoso artigo de 1915 sobre o inconsciente, ele diz e repete que o inconsciente é uma hipótese. Ele afirma, muito melhor que em outros artigos, que o inconsciente é uma hipótese necessária para dar conta de certos acontecimento psíquicos que escapam à consciência: essencialmente os sonhos, os sintomas, os lapsos, os chistes. O raciocínio de Freud é muito claro: se se quer explicar os fatos que aparecem nas ausências, nas lacunas, nos atos falhos e nos problemas do discurso inconsciente, não se pode vê-los como fatos absurdos ou puramente misteriosos; desta forma, se é obrigado a recorrer à hipótese de um psiquismo inconsciente. Porém, não foi por essa via que Freud provou a existência do inconsciente? Certamente não. Ele somente provou que, em se mantendo intacto o princípio do determinismo universal (que nada se dá por acaso), se é obrigado a supor que qualquer coisa de psíquica restabelece uma continuidade para-além ou aquém da descontinuidade sentida pela consciência.”

(texto extraído de Roustang, François, “Sur l’Épistemologie de la Psychanalyse”, in Le Moi et l’Autre, Mannoni, M. (org). Denöel, 1985.)

4.
 “Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado mantêm, para ele, relações naturais. Pode exprimir se esta confusão de um outro modo: todo o sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema fatual, quando é apenas um sistema semiológico.”

(texto extraído de Barthes, Roland, “Mitologias”, Ed. Brasiliense, 8ª edição, 1989.)

5.
 “… o segredo coloca a pessoa num estado de exceção; opera como uma atração de pura determinação social. É basicamente independente do contexto que guarda mas, claro está, é cada vez mais efetiva na medida em que sua posse exclusiva é vasta e significativa… Do segredo, que obscurece tudo quanto é profundo e significativo, nasce o erro típico segundo o qual tudo o que é misterioso é algo importante e essencial. Diante do desconhecido, o impulso natural do homem é idealizar e seu medo natural coopera para livrá-lo ao mesmo objetivo: intensificar o desconhecido através da imaginação, e prestar-lhe atenção com um ênfase que em geral não está de acordo com a realidade patente.”

(texto extraído de Georg Simmel, “The Secret and the secret society”, trad. ingl. e ed. Kurt H. Wolff (Nova York, Free Press, 1959) pp. 332-3. Citado pro Umberto Eco, “Interpretação e Superinterpretação”, Ed. Martins Fontes, 1993, pg. 44.)

6.
 Laing: “Transações, sistemas, jogos podem ocorrer em e entre sistemas eletrônicos. O que é especialmente pessoal ou humano? Um relacionamento pessoal não é somente transacional, é transexperiencial e nisso reside a sua qualidade humana específica. A transação sozinha, sem experiência, carece de conotações pessoais específicas. Os sistemas endócrino e retículo-endotelial transacionam. Não são pessoas. O grande perigo de pensar no homem em termos de analogia é que a analogia acaba sendo apresentada como uma homologia” (grifos nossos).

(texto extraído de Laing, R. D.,” A Política da Experiência e a Ave-do Paraíso”, Ed. Vozes, Petrópolis, 1974, pg. 40.)

Pergunta-se:
 dadas as afirmações acima, é possível pensar-se a psicoterapia como a imersão de duas pessoas num mesmo universo mítico? Pode-se supor que, na pós-modernidade, a des-mitificação do mundo elimine a psicoterapia, tal como estamos habituados a praticá-la?

* * * * *

Questões pós-modernas – II

1.
 A antiarte pós-moderna não quer representar (realismo), nem interpretar (modernismo), mas apresentar a vida diretamente em seus objetos. Pedaço do real dentro do real (veja as garrafas reais penduradas num quadro), não um discurso à parte, a antiarte é a desestetização e a desdefinição da arte. Ela põe fim à “beleza”, à “forma”, ao valor “supremo e eterno” da arte (desestetização) e ataca a própria definição de arte ao abandonar o óleo, o bronze, o pedestal, a moldura, apelando para materiais não artísticos, do cotidiano, como plástico, latão, areia, cinza, papelão, fluorescente, banha, mel, cães e lebres, vivos ou mortos (desdefinição).

(…)
A antiarte trabalha sobre a arte dos ilustradores de revistas, publicitários e designers, e acaba sendo uma ponte entre a arte culta e a arte de massa; pela singularização do banal (quando Andy Warhol empilha caixas de sabão dentro de uma galeria e diz que é escultura) ou pela banalização do singular (quando Roy Lichtenstein repinta em amarelo e vermelho, cores de massa, a Mulher com o Chapéu Florido, de Picasso). Elite e massa se fundem na antiarte.
(…)
Desetetizando-se, desdefinindo-se, tornando difícil saber-se o que é arte e o que é realidade, ela (a antiarte) tende ao niilismo, a zerar a própria arte. Pois na condição de pós-moderna, se o NÃO modernista é inútil, dado o gigantismo dos sistemas, então vamos desbundar alegre e niilisticamente no ZERO PATAFÍSICO. (Oposta às soluções sérias, a patafísica _ segundo o seu criador, o dadaísta Jarry _ é a ciência das soluções imaginárias e ridículas.)

(textos extraídos de Santos, Jair Ferreira dos, “O que é pós-moderno”, Editora Brasiliense, 9ª edição, 1991, pgs. 37 e 38.)

2.
 Falando sobre a minimal art “e, de certo modo, o discurso pós-moderno”, Rodrigo Naves diz:

No entanto, a ânsia de clareza que domina a minimal e que dominava boa parte do construtivismo europeu transformou-se muito rapidamente numa quase recusa à ampliação dos significados a partir dos trabalhos de arte. Suponhamos um trabalho extremamente simples e anônimo, como o empilhamento de três ou quatro dormentes de linha férrea. Isto perfaz, também, uma estrutura mínima. Se algum de nós desse de frente com tal objeto na rua, fora de um espaço destinado à arte, certamente não nos deteríamos para observá-lo, dado o caráter “anônimo” ou “trivial” dessa estrutura. 
A simplicidade, o anonimato do trabalho da minimal, juntamente com sua tentativa de desvincular-se da personalidade forte do artista (ainda que moderno), acabam por fazer com que esse tipo de manifestação necessite de um espaço institucional – museu, galeria ou lugar semelhante – que, de saída, dê estatuto artístico ao material apresentado, de modo a fazer com que objetos tão simples, tão singelos até, mereçam uma atenção semelhante à que dedicamos a um Matisse ou a um Picasso.

(texto extraído de Naves, Rodrigo, “O lugar da experiência na arte contemporânea”, in Artéria _ Santos revista, ano III, nº 4, junho de 1992, pgs. 97-98.)

3.
 Dissertando sobre “os paradoxos do poder que apareciam reiteradamente em terapia familiar”, Lynn Hoffman, detendo o relato sobre suas tentativas de trabalho psicoterápico, chega às seguintes afirmações:

“Deixei-me também influir por minhas próprias experiências prévias em terapia. Talvez eu não tenha tido sorte, mas minhas participações como paciente com frequência me humilharam e intimidaram. No mínimo, reforçaram uma idéia de mim mesmo como “um pobre ser humano”. Em parte como reação a estas experiências, eu comecei a buscar maneiras par fazer com que os clientes se sentissem mais confortáveis. Quando era apropriado, compartilhava com eles histórias da minha própria vida. Assumia abertamente a responsabilidade se algum cliente tivesse alguma queixa a respeito da terapia, ao invés de considerar este fato como evidência de resistência. Insistia em indagar o cliente sobre suas expectativas em relação à terapia, e os incentivava a perguntar sobre o meu trabalho. Quando me sentia paralisada, especialmente se parecia que um tema pessoal estava me impedindo de ir adiante, colocava esta idéia na conversa, o que frequentemente operava maravilhas para destravar a situação.

(texto extraído de Hoffman, Lynn, “A reflexive stance for familiar therapy”, Journal of Strategic and Systemic Therapies, vol 10, nº 3/4, Fall & Winter, 1991, pg. 11.)

Pergunta-se:
 dadas as afirmações acima (e supondo-se válida a analogia com a arte), é possível que, num futuro próximo, só se reconheça o diálogo psicoterápico por sua inserção num espaço institucional _ a saber, a clínica ou o consultório?