Luiz A. G. Cancello
A origem do encontro terapêutico pode ser buscado na antropologia e na história. Em todas as sociedades conhecidas, os homens buscaram, para o alívio de seus males, um determinado membro de sua comunidade referendado para ser o conselheiro, o pajé, o xamã, o sábio, ou qualquer outro nome que se dê a tal personagem. Talvez pareça pretensão iniciar por este caminho uma possível compreensão do papel do psicólogo em nosso meio. Creio, no entanto, que as bases para um entendimento histórico do fenômeno começam por esta via. O referendum, hoje, é o diploma universitário, e, nos melhores casos, um curso de formação e o submeter-se à psicoterapia em alguma “linha”, substituição científica da iniciação do feiticeiro. Apesar de o psicólogo saber que não é conselheiro ou pajé, frequentemente o cliente age como se estivesse frente a frente com esse tipo de “salvador”. O terapeuta, na falta de outros deuses, é ungido pela suposta deusa da Ciência.
Dois processos históricos ajudam a compreender o surgimento do psicólogo como terapeuta. O primeiro é o progressivo desaparecimento do “médico de família”, aquele que tratava de duas ou três gerações de um mesmo clã, frequentando a residência (e a intimidade) de seus clientes — e que atende, hoje, nos consultórios conveniados e no SUS. O outro prende-se à paulatina dessacralização do universo, cada vez mais interpretado sob a égide da ciência, fragmentando os campos do saber e abrindo um espaço antes reservado à confissão e ao ministro religioso. O psicólogo entra na História por essas brechas, ocupando os lugares vagos com suas teorias, espremido entre a casa e a rua, o científico e o esotérico, misto de rigor e de fé.
As teorias psicológicas, como todas as concepções em Ciências Humanas, sofrem a influência das mudanças tecnológicas dos períodos históricos em que tomam forma. O surgimento da locomotiva movida a vapor, no século XIX, seguida pelo motor a explosão, encurtara dramaticamente o tempo e o espaço, mudando a visão de mundo constituída e provocando consequências nos modelos científicos e nas concepções artísticas. Novas máquinas (que passaram até a voar!) e a popularização das ideias de Darwin, de Einstein, de Planck e de tantos outros instigaram novas metáforas para que se compreendesse a mente humana. As Ciências Físicas e Biológicas regeram o tom metodológico da época, e em grande parte o fazem até hoje.
O desenvolvimento da tecnologia, no entanto, mostrou um potencial destrutivo jamais sonhado. Duas guerras mundiais e duas bombas atômicas trouxeram ao mundo novas indagações. Entre a realização de alguns sonhos milenares (como o aumento significativo da média de vida humana) e o pesadelo das novas formas de matar, surge um novo homem, menos temente a Deus e mais temente a si mesmo, mais covarde e mais megalomaníaco, dependente de uma Ciência da qual entende, quando muito, os princípios mais elementares.
A psicologia nasce nesse mundo novo, fascinante e cheio de forças e objetos poderosos e misteriosos: a termodinâmica, a gravidade, a relatividade, o avião, a Bomba e, recentemente, o computador. Passa a formular, para seu próprio consumo, um mundo similar a esse, porém “interno” ao indivíduo, resquício do conceito de “alma”: pulsão, energia orgônica, inconsciente, arquétipos, eros, existenciários, instinto de morte, mapas cognitivos. Essa parafernália de conceitos, gestada nos países centrais e divulgada e explorada até as últimas consequências pelos meios de comunicação de massa, passa a fazer parte da autoconcepção do indivíduo comum, como uma forma perversa (porque simplificada, mecanizada e desenraizada) de “autoconhecimento”. Sem antecedentes históricos e culturais, a “interioridade” construída pelo imperialismo cultural é divulgada pela mídia através de supostas autoridades no assunto, assíduas frequentadoras dos programas do horário nobre de domingo. A identificação do sujeito com seus encantos e horrores “internos” aparenta definir uma individualidade, não deixando que ele se perca num mundo “externo” cada vez mais incompreensível e (portanto) hostil. Mas acaba por aliená-lo, prendendo-o a uma concepção estreita da vida, cuja tônica é um suposto “mecanismo” interno e um individualismo exacerbado.
Faz parte do papel do profissional em Psicologia estar atento aos encantos e armadilhas dos tempos modernos, para definir-se com a independência possível e dar ao cliente o máximo grau de liberdade, não o prendendo a modelos restritos, estabelecidos por formulações estranhas à sua cultura e ao seu modo humano de ser.
Os psicoterapeutas não podem ser agentes de tais pseudoteorias. O jurista Norberto Bobbio disse certa vez: “Não é possível ser um bom marxista sendo só marxista”. Parafraseando o italiano, eu diria que não é possível ser um bom psicólogo sendo só psicólogo. A Psicologia e a psicoterapia precisam sair de sua casca e ampliar os horizontes em direção à Antropologia, à Sociologia, à Filosofia e à História, passar mesmo pela Informática, embrenhar-se na Política e compreender a leitura peculiar que a Arte faz de todos esses conhecimentos.
Creio que por esta via os psicólogos, aqueles a quem foi dada a missão de compreender os outros, poderão compreender melhor a si mesmos como produtos e agentes das transformações do mundo, contribuindo cada vez mais para a transformação do Homem.
Publicado no EGO – Informativo da Associação dos Psicólogos de Santos, Ano III, nº 2, maio/junho de 1999.