exutório lítero-psicológico
Luiz A. G. Cancello
A mente vaga, é o seu destino; erra, em dois sentidos. É essencialmente vagabunda e errante, disciplinada apenas pelas exigências da lida com as coisas e com os outros. Da atividade desses bilhões de células nervosas, o sistema nervoso, espocam flashes mentais, desconexos. A beleza do caleidoscópio é uma pseudo-simetria; apenas desordem refletida por espelhos. De algum modo compulsivo organizamos o caos, tentando estruturá-lo.
Fomos sendo formados do caos para a ordem. Esbarramos aqui num limite: não conseguimos conceber nossa evolução de outro jeito. Começamos por não ver estrutura no comportamento aleatório do bebê. Os pais tentam organizá-lo, punindo (“não mexe aí!”), ou esboçando caracteres definidores da futura personalidade (“parece o avô! Acho que vai ser músico.”) Esses atos e palavras, mixados pelo tempo, adquirem uma configuração típica. Em confronto com alguns aspectos do temperamento da criança vão desenhando o padrão formador da personalidade futura. A maioria das pessoas crê que as coisas se passam assim.
Mas há um mistério sobre o momento mágico da transformação da história em psicologia. Quando, o dia, o mês, o ano, o indivíduo se percebe como esta pessoa singular, dotada de tais e tais qualidades definidoras de si? Não se precisa a hora da extrema prisão. Mas daí por diante ele jamais se libertará da própria imagem.
Imerso num turbilhão biofísico e bioquímico, por um lado, e com o leme emperrado pela autoimagem, por outro, é possível decidir a própria direção?
A vontade é um doce mito. Nas situações de pretensa escolha, muito poucas opções deixarão de colidir com a ideia de si já formada, nomeada “identidade” por alguns. Perde-se tudo, amor, dinheiro, para não “perder a si mesmo”. A vontade se configura a partir de um sentido dado às situações ambíguas. Inventa-se uma estória para manter a identidade intacta. Não há escapatória. A direção já foi escolhida; eu quase diria determinada. O resto é bobagem.
Resta brincar de dar sentido. Isto ainda nos parece facultado. A única liberdade. Talvez uma ilusão fisiológica. Cultivemo-la; é consoladora.
As teorias psicológicas pouco ou nada são; limitam-se a esse jogo de atribuição estrutural. A responsável pela multiplicidade de escolas ou “linhas” não é a baixa densidade de conhecimentos da área. A adoção desta ou daquela teoria, por parte de um teórico, é principalmente uma questão de sobrevivência. Todos nós, adeptos deste ou daquele sistema de pensamento acerca do comportar-se humano, fomos por tal “escola” seduzidos de maneira absolutamente irracional, numa primeira instância. Das palavras ouvidas por algum professor fomos escolhendo aquelas sem o poder de nos destruir. Depois erigimos colossais edifícios de conceitos para justificar nossa pretensa opção. A uma certa altura orgulhamo-nos de nossos conhecimentos. Além de bobos somos metidos a besta.
Psicólogos são os últimos bruxos dos séculos. Um dia um sujeito sentou de costas para um outro e este se deitou. Nessa esdrúxula situação começaram a acontecer coisas. Descobriram não serem amigos; também não eram mestre e discípulo, professor e aluno, juiz e réu. Não eram nada codificado. A compulsão à estrutura foi dando normas àquilo. O sujeito deitado comportava-se como sabia; era o mesmo sofredor de sempre, procurando auxílio. O outro, o médico sentado, por motivos já analisados por muita gente, trouxe o sexo como centro da codificação desse encontro inusitado.
O astrólogo lia a vida de cada consulente pela posição dos astros. Mas nunca um desses magos afirmou (antes dos tempos modernos) alguma coisa sobre a causalidade. No momento do nascimento de alguém os astros não “imprimem” nessa pessoa uma dada personalidade. Isso é coisa de gente moderna tentando entender gente antiga.
Todo o cosmos era regido (pelas concepções da época) por uma lei de harmonia. Nada se separava de nada; “O que está em cima, com o que está embaixo”, reza uma lei de Hermes. Nascituro e céu têm a mesma leitura por fazerem parte de um mesmo todo vivo – o Universo – num mesmo momento. Nada “causa” nada.
Todo o comportamento de alguém pode ser lido através de sua sexualidade, como outrora se lia uma vida através dos astros. Apenas reduziu-se o campo do vivente. Se antes todo o cosmos era o organismo a ser lido, este agora restringiu-se aos limites da pele. Entrávamos na época da microeletrônica, microbiologia, da microastrologia: a psicologia. Muita gente confundiu essas coisas com causa e efeito. Escorregou-se da harmonia para a causalidade.
Com ou sem razão, o astrólogo, pelo menos num ponto era mais lúcido: definia os caracteres essenciais da personalidade logo de cara. A margem de liberdade pertencente a cada um ele deixava pairando, com uma famosa frase: “Os astros dão a inclinação, não a determinação”. Os basbaques acreditam ver aí uma alusão ao livre arbítrio. Conversa. O astrólogo dizia isso para não perder o cliente.
Impelidos pelos valores do seu tempo, houve teóricos – muitos! – concebendo a vida humana como destino, caminho em direção a algo, seja este algo físico ou espiritual. Entre os materialistas, os mais famosos entronizaram o sexo como fundamento de seus códigos a respeito do homem. Deram nomes ao objetivo a alcançar: potência orgástica, tornar consciente o inconsciente, etc. Outros, mais espiritualizados, nomearam de forma diferente o seu escopo: self, autorrealização, samadhi, nirvana e outros.
(Justiça seja feita: o camarada primeiro, aquele sentado pela primeira vez de costas para o outro, não formulou claramente uma conclusão; indicou um caminho, e só – o tal “tornar consciente o inconsciente”. Já era mais moderno, suplantando nesse ponto alguns de seus seguidores.)
Depois, já descrentes de objetivos, outros teóricos, agarrados a fiapos de esperança, construíram novas concepções, baseadas na ideia de caminho. Um caminho para o nada, para o não-se-sabe-quê, para a morte, mas enfim um caminho. Os inconformados, para dar mais graça a esse esforço, chamaram-no de “desenvolvimento”.
Todos conhecemos aqueles indivíduos portadores, com orgulho, de sua própria história trágica. Relatam a decadência de suas vidas, por vezes começando desde a geração da bisavó, com um gosto de fazer babar. Em seu horror, os olhos brilham. Comprazem-se com a tragédia, como todos os leitores da literatura universal, todos os apreciadores de teatro, todos os maníacos por cinema. A decadência é a podridão estilizada, pois em uma e em outra o produto final será o mesmo: a ruptura do estruturado, pedaços soltos e sem sentido. A tragédia nos conduz à condição primordial de fragmentados. Por isso é fascinante – como fotografia.
Frequentemente os povos primitivos concebem o momento presente de sua história como uma etapa de desagregação. Segundo suas lendas, um herói civilizador fundou a aldeia e ministrou o ensino dos costumes e da lida e fabrico dos objetos. O povo desenvolveu-se até atingir o apogeu. A partir daí começou a decair – e nessa trajetória de queda situam-se sempre, quando entrevistados. Às vezes as coisas aparentam ser diferentes. “… e viveram felizes para sempre” é o desfecho de muitas estórias infantis. São as únicas a terminar no ápice, mas cumpre não esquecer: são contadas por adultos deliberadamente mentirosos.
Toda essa arenga faz pensar no prosaico conceito de “eterno retorno”, de um crescimento depois da derrocada. Essa nova formação tem nomes em voga: desenvolvimento, abertura, renascimento, etc, etc. Tolice. Pese um vaso só com a terra e a semente. Pese, depois, todo o material ali acrescentado: estrume, água, etc. O peso final da planta será igual à soma total dos pesos anteriores. Se for considerado como universo de observação o vegetal em seu meio ambiente, tudo apenas mudou de forma. Algumas coisas se agregaram, outras se decompuseram. Caleidoscópio. Há poetas restringindo a visão apenas à planta. Cantam o tal “crescimento”. Confortantes viseiras em nome da arte!
É compulsiva a procura do eixo definitivo, do axioma básico, da mesmidade subjacente à diversidade dos atos, da prisão referencial a partir de onde se possa pensar a liberdade. No húmus, raiz etimológica de homem, a liberdade flutua na fronteira entre o estrume e o broto, história e psicologia, incompreensível ruptura do continuum, limite tendendo a zero, dissolução num átimo: nada.
Tendemos ao fragmento, à tragédia, à desagregação: “Vá à merda” não é propriamente um xingamento; apenas escancara o destino. Merda, crescimento, eterno retorno: grandiloquências preenchendo o vazio. Construções desesperadas em alicerce volátil. O mestre oriental administrava com sabedoria a geleia geral. Falava em “perder o ego”. Genial: perder um nunca tido! A ideia pegou.
Levados de roldão pela vida, inevitavelmente constatamos: a paisagem é mutável a cada instante. Na recusa da perplexidade impõe-se explicar o diverso. Aos fragmentos, um sentido.
Alguns têm o desplante de falar em “mudança interior”, “crescimento interno”. Pensam nisso como pré-condição para mudanças “exteriores”. Como se vida pudesse, antes, ser um ensaio de si mesma. Mas qual! Cada um de nós já nasceu em pleno palco. Os camarins estão fechados desde sempre.
Outros, ainda, priorizam a mudanças das “condições exteriores”. Esperam a loteria, a morte do marido, o socialismo. Gestação prolongada, feto encravado. Esperam um cataclisma, mas se ele vem, a perplexidade o acompanha: o futuro era diverso do imaginado. E agora, como digerir a nostalgia?
A linguagem, grandeza e miséria nossa, torna linear a viscosidade do ser no mundo. Escorregamos de cá para lá e de lá para cá numa linha imaginária, equador das ilusões, ora tendo como hemisfério o “mundo”, ora o “eu”. É terrível a possibilidade de dissolver essa distinção formal. Mal digerindo o conceito, vomito sons e garatujas, mas o exutório rescende inevitavelmente a lógica, carcereira da identidade e de outros enganos.
A gratuidade radical do universo rege sem regras os fragmentos dispersos no nada. Palavras.
Um cometa acaba de chocar-se com a terra, devolvendo-nos ao estado fragmentado de onde nunca saímos. Por isso fomos incapazes de perceber o impacto do astro. Pedaços à deriva, espantamo-nos com nossa condição de errantes. Como quem estrutura um quadro abstrato ou uma melodia atonal fazemos disso uma composição. Aí radicados surge-nos uma vaga noção da integração do homem com o universo. Nossos conceitos sobre a natureza humana sempre foram isso: uma conveniente estética da fragmentação. A vida é bela.