Percursos de um alérgico

Luiz A G Cancello

Quando eu tinha 6 anos, o médico da família deu a notícia para minha mãe: “Seu filho é alérgico”. Fiquei muito intrigado, contei para uma vizinha. Ela me disse que isso era frescura, coisa de mulherzinha, aconselhou-me a não espalhar a notícia. Começou mal.
Naquele tempo eu sentia falta de ar e comecei a usar um aparelho desajeitado, chamado Dyspne-inhal, vulgo “bombinha”, com um soprador de borracha medonho acoplado a um tubo de vidro, para dilatar os brônquios. Era um vexame manejar aquilo em público.
Mais tarde os inaladores foram aperfeiçoados, tornaram-se pequenos e discretos, cabiam no bolso. Enquanto durou a fase do Dyspne-inhal aprendi truques incríveis para disfarçar a aplicação do remédio. Levava-o para a escola na mala, ia ao banheiro antes de entrar em aula, para prevenir a falta de ar. Derrubava um lápis e me agachava embaixo da carteira, fingindo procurá-lo, para usar o aparelho. Uma tortura.
Com o tempo, o termo alergia foi perdendo a conotação negativa, embora “asma” ainda fosse pesado. Adotei a palavra “bronquite”, um substituto mais ameno. Rinite e sinusite tornaram-se comuns, provavelmente disseminadas pelas condições da vida moderna.
Os primeiros antialérgicos orais davam sono, era tomar e desabar. Lá pelos anos 80, creio, inventaram medicamentos que não tinham esse efeito. Foi outro grande avanço.
Mas a alergia zomba dos progressos da Ciência. Estamos sempre, os alérgicos, coçando o nariz, ou com dor de cabeça, às vezes respirando com dificuldade, sentindo as vias aéreas superiores entupidas. Aprendemos a conviver com o desconforto, o que é uma lição de vida. Há algo de estoico em nossa condição.
Quando estamos atacados, não dá pra disfarçar. O nariz fungando, as faces rubras, olheiras, pigarro, a inspiração difícil, são delatores óbvios. Sempre vêm as perguntas: “O que você tem?” “Você está bem”?
Até aí tudo certo, os amigos costumam se interessar pela nossa saúde. Terrível, mesmo, é o que se segue. Todos têm uma sugestão de tratamento infalível, que deu resultado para si ou para um primo, um filho, um conhecido.
Nós, os alérgicos, ouvimos todo o tempo intruções para colocar uma bacia de água debaixo da cama, fazer inalação com buchinhas do Norte, tentar acupuntura e homeopatia, praticar natação, tirar o gato de casa, tomar banho frio ou chá quente, fazer terapia, não mexer nas roupas guardadas, consultar um médico em São Paulo que curou a prima, evitar comidas industrializadas, eliminar o glúten, o açúcar, a carne vermelha, fazer exercícios, uma infindável sequência de recomendações estapafúrdias.
Meus pais eram esclarecidos, com recursos para me levar a bons médicos. Continuo tendo, hoje, condições de procurar os melhores tratamentos. Nada disso, porém, importa aos que me cercam. Eles têm mil soluções, reconheço sua imensa preocupação, mas é desesperador ouvir tantos recursos simples, ao alcance da mão, que este incompetente alérgico não conseguiu perceber.
Agradeço ter percorrido o percurso em que precisei lidar com o Dyspne-inhal, os tantos tratamentos e o empenho dos amigos. Boa parte do meu aprendizado em driblar as dificuldades da vida ocorreu nesse caminho. Obrigado mesmo.
Agora, no entanto, estou no limite da paciência. Não responderei com grosserias, pois prezo as amizades. Vou apenas escrever uma crônica com traços cômicos, para exorcizar as pias intenções dos que me amam. O humor, ainda que amargo, é sempre um remédio.
A gente se vê por aí e fala de outras coisas. Valeu.

Crônica publicada no jornal “A Tribuna”, de Santos, em 18/06/2018