Luiz A G Cancello
Nesta pandemia reaprendi a lavar a louça e a prestar atenção nos detalhes dos sabões e detergentes, na necessidade guardar os pratos e talheres antes de lavar a nova leva, no modo de distribuir as peças no escorredor, nas três vezes que é preciso enxaguar um copo, nos cuidados para que a água não espirre da concavidade da colher para a minha roupa. Esvaziar a garrafa térmica e jogar o café ainda quente em algum prato engordurado, ver crosta se dissolvendo e escoando pelo ralo, que satisfação! E os alimentos que grudam, como queijo e feijão, contrastando com o chocolate, que se dilui sem problemas. Como é bom ter um rodinho de borracha e enxugar a pia, nem precisa passar o pano. Há dias em que a operação é mais excitante, outras vezes nem tanto, a gente vai dando conta e se divertindo.
Enquanto tudo isso acontece na beira da pia, há um fone de ouvido preso aos meus pavilhões auditivos. Ouço rádio. Despencam na minha caixa craniana estatísticas indecentes de mortes, mortes a rodo, mortes desnecessárias, frutos de descaso pessoal e negligência das autoridades, além daquelas inevitáveis pela ação terrível do vírus.
Como posso estar me encantando com os detalhes da lavação de louça, se tanta desgraça acontece a tão pouca distância, no hospital do meu bairro, talvez num apartamento do prédio em que moro? Essas vidas que escoam por outros ralos, escapam dos abraços dos entes queridos, não se diluem na massa dos números, são concretas, são pessoas reais. Que faço eu observando a forma da espuma, desenhada no canto da cuba?
Tento imaginar que a lavação de louça é um ritual de purificação, mas não faz sentido. Poderia pensar que é algo simplesmente a ser feito, correndo paralelo à desgraça, são as dimensões do real que se superpõem, nada há de tão espantoso, tudo normal. Também não me convenço. Sinto que deveria ficar mais horrorizado, mais compungido, mas dizem que só percebemos a dimensão da desgraça quando alguém próximo cai doente. Uma só pessoa querida supera todas as estatísticas, rasga a totalidade, rompe os 100%, mas ninguém quer que isso aconteça. Há de ter um sentido a convergência dos dados da pia e do noticiário, não seria exagero dizer que este é o problema filosófico do início do século. Enquanto o conflito se desenvolve, acabo de lavar a louça e o jornal falado dá lugar a uma propaganda de supermercado. Sinto um grande alívio, uma pausa na questão existencial, sabendo que está apenas adiada.
Percepções e sensações vão e vêm. Os pratos e talheres, dançando na minha mão, tomam o foco, e logo em seguida a voz do locutor me traz a pandemia, o horror. Lembro-me de um conhecido que faleceu anteontem. Acabou o detergente, pego outro na dispensa, volta o jornal, volto à pia, o cotidiano se faz entre as tarefas rotineiras e a ruptura da ordem. A realidade chega e foge, negaceia, brinca de esconde-esconde desde sempre. O que hoje espanta são os extremos, a morte e o prosaico lado a lado, promíscuos, indecentes.
De repente um prato escorrega, cai e se espatifa. Tomo um susto enorme, desproporcional, o coração dispara e o corpo paralisa, os olhos arregalados enxergam o todo, por um momento a compreensão se faz e logo se dissipa. Resta um estranho torpor.
Recolho os cacos devagar, a pá de lixo ainda treme nas mãos.
Publicado no jornal A Tribuna em 6 de janeiro de 2021