Os Supridores, de José Falero

Apreciação de Luiz A G Cancello

Eu tinha acabado de ler “A Tirania do Mérito”, obra filosófica de Michael J. Sandel, quando comecei a ler “Os Supridores”. Vou iniciar esta apreciação com duas citações, uma de cada livro. Em primeiro lugar, a fala de Pedro, personagem principal do livro de ficção, falando para seu amigo Marques:

“Daí, tu acaba acreditando numa coisa que simplesmente não existe, mas que a maioria das pessoa acredita que existe: meritocracia. Acontece que acreditar na meritocracia te faz mal. Afinal, se as pessoa que tão jogando dinheiro pra cima merece tudo o que têm, então tu, que não tem porra nenhuma, merece não ter porra nenhuma. E essa lógica simplista faz tu te sentir um fracassado. Isso coloca nos teus ombro um peso foda de aguentar.”

E agora o filósofo:

Vista de baixo, a arrogância das elites é irritante. Ninguém gosta de ser desprezado ou desprezada. Mas a crença meritocrática adiciona insulto ao dano. A noção de que seu destino está em suas mãos, de que “você consegue, se tentar”, é uma faca de dois gumes: por um lado é inspiradora, por outro, odiosa. Ela felicita vencedores, mas rebaixa perdedores, até mesmo do ponto de vista das próprias pessoas. Para quem não consegue encontrar emprego ou ganhar dinheiro suficiente para se sustentar, é difícil fugir do pensamento desmoralizante de que seu fracasso é resultado de suas próprias ações, de que simplesmente não tem talento nem elã para o sucesso.

Parece que o autor ficcional leu o filósofo. As críticas à meritocracia e aos privilégios das elites não se limitam à citação anterior; estão presentes o tempo todo na história dos amigos, com os mesmos argumentos levantados de maneira formal por Sandel.

Pedro e Marques são repositores (supridores, em gauchês – o autor é gaúcho) de supermercado. O primeiro gosta de ler, informa-se sobre política e sociologia, não se conforma com o que o destino reserva para ele: a vida sofrida, privada de conforto e bem materiais, numa sociedade que ele percebe como estanque, sem possibilidades de ascensão.

Falero descreve com precisão o ambiente do supermercado, as relações entre o proprietário, o gerente, empregados e seguranças, configurando um microcosmo onde as relações de dominação aparecem claramente. Por ser um lugar familiar ao leitor, é muito fácil que cada um se veja envolvido na trama. É aqui que Pedro pensa o jeito de escapar de uma sina de pobreza: ligar-se ao tráfico de drogas. Convence Marques a segui-lo, e a partir disso o livro desenrola a saga dos amigos.

A leitura é muito envolvente, apesar de algumas longas falas de Pedro. As relações familiares e vizinhança, tais como são numa camada desfavorecida da população, aparecem com todas as suas caraterísticas. O texto também é, sem dúvida, uma bela história de amizade. Muitos outros personagens, todos muito bem caracterizados, chegam para enriquecer a história. Especialmente fascinante é perceber que Pedro mantém sua visão das injustiças sociais, mesmo em condições onde tal pensamento, em princípio, não teria lugar.
A partir de um certo ponto o leitor se vê num thriller, é impossível largar o livro. A obra é bastante visual, como se já estivesse pronta para um filme.

Algumas questões de estilo me incomodaram um pouco, exigindo um pouco mais de maturidade do autor. Por exemplo, “ainda não tinha chegado o momento de estancar a gastança que nos últimos meses vinha irrigando e fazendo florescer os campos materiais de sua existência, outrora áridos desertos.” Mas são firulas, pequenos deslizes que não comprometem o todo da obra.

Recomendo fortemente a leitura, nestes tempos em que se valorizam os autores negros da periferia. Temos muito a aprender sobre esse mundo tão próximo, mas desconhecido para uma classe privilegiada.