Os caminhos da metáfora

Luiz A. G. Cancello

O objetivo inicial deste trabalho é tecer algumas considerações sobre o emprego da metáfora nas sessões de psicoterapia, bem como examinar teorias e/ou crenças que sustentam essa prática. A casuística foi escolhida como recurso para que o tema seja introduzido. Permeando as discussões de caso, surgem outras questões relativas à principal ferramenta do terapeuta: a Linguagem. E. a partir daí, o limite se estende a perder de vista.. Vamos, ao menos, tentar descrever o horizonte.

I

Lúcia estava descrevendo, como sempre faz nas sessões, o que aconteceu com cada filho. Perguntei a ela, como já o fizera de outras vezes, onde estava a mãe dessas crianças, tentando mostrar a dificuldade — ou falta de costume — de Lúcia falar de si própria.
Desta vez ela falou de sua solidão. Filha única, colocou-se como pressionada, quando jovem, a estar sempre com os pais, o que equivalia a estar só, sem a companhia de colegas de sua idade. Sei, por sessões anteriores, que seu diálogo com o marido também é limitado; ele não é uma pessoa de conversa fácil.
Lembrou-se em seguida de um fato recente. Mãe de três crianças em idade escolar, foi a uma papelaria comprar material para os filhos. A dona da loja, com quem já chegara a trocar algumas palavras, perguntou-lhe: “E para você, nunca leva nada?”, evidenciando seu esquecimento de si, para usar um termo caro aos existencialistas.
Ato contínuo, começou a descrever  seu gosto por passear na praia. Referiu-se ao mar como imóvel, sempre ali, aconteça o que acontecer com os homens; falou com admiração e ternura da indiferença e da imobilidade do oceano. “Ele é sempre o mesmo”, disse. A certa altura, identificou o mar com a natureza. Enquanto falava, o olhar perdia-se ao longe, como visualizando a cena. Era de se notar que o passeio lhe fazia bem; sugeri que ela se sentia acolhida na praia. Tal intervenção teve a força de uma evidência, sendo claramente aceita, provocando um sorriso e um concordar através do movimento usual da cabeça. A esta altura, arregalando um pouco os olhos, a paciente falou: “O mar é como o meu marido.”
Vamos prestar atenção nas palavras usadas. Lúcia se queixa de solidão e de falta de amigos, apresenta alguma dificuldade em falar de si mesma, e pode concordar que se sente acolhida por algo grandioso, indiferente imóvel. Dizendo em outros termos: esta ideia, até aqui, faz sentido para ela, mas um sentido curiosamente parcial, pois, ao menos num primeiro momento, não sente o marido como “acolhedor” Na seqüência das sessões, isto foi explorado terapeuticamente.
Deixei passar um momento de silêncio, enquanto o olhar dela estava perdido em reflexão ou visualização. Tentei estabelecer um nexo entre sua solidão, seu casamento e este sentir-se acolhida expresso por palavras que, no senso comum — na linguagem do ninguém — sugerem o contrário de acolher.
Ao confrontar seu emprego das palavras com o uso mais trivial que delas se faz, introduzi um estranhamento no universo de Lúcia. Provoquei-a a aproximar-se desse afastamento do banal (por estranha que esta frase possa parecer). Neste movimento, a paciente chega à sua maneira própria de estar no mundo.

Façamos agora uma observação de cunho teórico. Aqui há metáforas. Ao atribuir “indiferença” ao mar, Lúcia metaforizou. O terapeuta ampliou o alcance da figura; ao estabelecer os nexos descritos, construiu outras metáforas que foram oferecidas a Lúcia. As palavras foram retiradas do vocabulário comum aos dois participantes do diálogo; já estavam na cultura muito antes do encontro de que se trata aqui, já se encontravam à disposição dos homens.

Segundo o Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, de Francisco da Silveira Bueno, 5º volume, pág. 2413, metáfora é:

“O emprego, uso figurado de uma palavra. Em toda a metáfora há sempre uma comparação. Dizer-se de uma cadeia de montanha serra envolve duas metáforas: cadeia e serra, ambas palavras usadas em sentido figurado. Afirmar que “o vento uivava à porta da casa” ou que “o rio serpenteava pelo dorso das montanhas” é dar exemplos de metáforas: uivar é próprio de alguns animais, como o cão, o lobo, etc.; serpentear, comparação com os movimentos da serpente; dorso, parte do corpo humano aplicada à montanha. Gr. metà, mudança, alteração, translação e phora, de phero, transposto: metaphorà“.

Ou, apelando para a Gramática  de Faraco e Moura (Editora Ática, 11ª edição revista e ampliada, 1992), Metáfora

“Consiste em atribuir a uma pessoa ou coisa uma qualidade que não lhe cabe logicamente. Essa transferência de significado de um termo para outro baseia-se na semelhança de características que o emissor da mensagem encontra entre os dois termos comparados. Portanto, é um comparação de ordem subjetiva.”

Depois de alguns exemplos da Literatura, seguem-se uma explicação, um quadro e um diagrama:

“A metáfora não passa de uma comparação a que faltam os elementos de ligação.
Observe:

COMPARAÇÃO
Ele é bravo como um touro
METÁFORA
Ele é um leão

A metáfora é a mais importante figura de estilo. Poderíamos representá-la graficamente assim:

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O ponto de intersecção entre os dois elementos justifica a metáfora, pois é nele que se situa a possibilidade de aproximar diretamente os seres envolvidos na comparação.”

Na intervenção terapêutica também parece haver uma comparação e uma transposição ou transferência.. Supõe-se que haja, no caso, uma exigência funcional, ao contrário do uso literário da metáfora, onde predomina o estético. Mas a separação entre esses campos não é tão nítida. Uma teoria psicológica, onde as verbalizações do terapeuta supostamente são baseadas, pode atrair-nos por sua elegância, pelo estilo com que o autor a expõe e por tantas outras variáveis subjetivas. Sua aceitação e adoção parecem prender-se a um caráter hermenêutico:

“As metáforas têm um número de importantes funções em psicologia. Em primeiro lugar, as metáforas podem simplificar uma idéia ou comportamento, enfatizando certos elementos mais que outros.
Destacando certos pontos, freqüentemente reestruturam um problema de uma nova maneira que rompe idéias e comportamentos previamente sustentados. (…) Em segundo lugar, as metáforas com freqüência são extremamente íntimas ou pessoais em sua natureza, desde que elas se referem muitas vezes às experiências corporais. Isto implica em que terapeutas e pacientes compartilham certas experiências. (…) Em terceiro lugar, as metáforas podem apresentar uma qualidade séria mas ao mesmo tempo leve, o que permite ao terapeuta comunicar ao cliente aspectos altamente pessoais, sem parecer tão invasivo como ao fazer intervenções mais diretas. (…) Finalmente, a metáfora pode ser transferida rapidamente de uma situação para outra, pois enfatiza a relação entre situações, mais que uma série discreta de fatos”  (Berlin, Richard M., Olson, Mary E., Cano, Carlos E. e Engel, Susan, “Metaphor and Psychotherapy”, American Journal of Psychotherapy, vol. 45, nº 3, 1991, pág. 364 – grifos nossos)”

Observemos a frase grifada: a metáfora enfatiza a relação entre situações. Mas não são situações quaisquer, com já foi sugerido na citação. Humberto Eco destaca esse ponto:

“Uma metáfora existe quando substituímos um veículo pelo conteúdo com base em um ou mais traços semânticos comuns a ambos os termos linguísticos: mas, se Aquiles é um leão porque ambos são corajosos e ferozes, estaríamos inclinados a rejeitar a metáfora “Aquiles é um pato”, justificada com base no princípio de que ambos são bípedes. Poucos outros são tão corajosos quanto Aquiles e o Leão, ao passo que muitíssimos outros são bípedes como Aquiles e o pato. Uma similaridade ou uma analogia, qualquer que seja seu status epistemológico, é importante quando é excepcional, ao menos segundo uma certa descrição. Uma analogia entre Aquiles e um relógio baseada no fato de ambos serem objetos físicos não tem absolutamente nenhum interesse. (Eco, Umberto, “Interpretação e Superinterpretação”, Ed. Martins Fontes, 1993, pág. 73 – grifos nossos)”

A metáfora bem colocada, em nosso caso, precisa estar inserida no âmbito de uma dupla excepcionalidade. O terapeuta vai estar atento para a oportunidade de dizê-la, e para o conteúdo de seu discurso. Não vai ficar distribuindo a esmo figuras de retórica. Guardará suas palavras para desvelá-las a um sinal do paciente: os famosos lapsos, um vacilo no falar, a voz embargada ao se referir a determinado assunto, um olhar perdido, o sonho contado com ênfase, um caso relatado com raiva, e tantos outros momentos com probabilidade de se tornarem significativos — ali onde indicamos, no dizer cotidiano, que há emoção. Sob este ponto de vista, a psicoterapia é a intervenção sobre a semiologia de um discurso emocionado. Esta semiologia é expressa em marcas de oralidade.

Ora, estamos tratando de um fato da linguagem. Para subverter o enfoque do tema vamos a Alfredo Veiga-Neto, em “A ordem das disciplinas” (texto retirado da Internet, URL http://orion.ufrgs.br/faced/alfredo/) O autor utiliza as considerações a seguir em contexto pedagógico; qualquer má interpretação fica por minha conta. Ele clarifica a diferença entre as concepções antiga e moderna da linguagem:

“(…) Se para uns a palavra é a coisa e se para outros a palavra representa a coisa, Foucault e Elias — na esteira da Lingüística Histórica — nos dizem que a palavra institui a coisa. Ora, se a linguagem se coloca em movimento pelo discurso, então são tais discursos que formam os próprios objetos de que falam. Conclui-se daí que até nós somos uma função dos discursos. A questão não é dizer: “somos influenciados pelos discursos”; nem, muito menos, dizer “os discursos tanto podem nos enganar, nos ideologizar, quanto podem nos iluminar”. A questão é outra e muito mais dramática: não há como pensarmos por fora dos discursos. Somos um ser de linguagem e não um ser que tem a linguagem. De certa maneira, então, está-se diante de um determinismo; mas não se trata de um determinismo ingênuo, necessitário, senão de um determinismo que, por estar submetido à causalidade imanente, chamo de contingencial.”

Esta citação permite um aproximar-se do trabalho realizado pelo terapeuta. A palavra institui a coisa: na mesma direção, a seqüência acolhimento-indiferença-imobilidade institui (metaforiza?) uma associação para o cliente. O fato de tal junção de termos ter ocorrido ao terapeuta naquela sessão e naquela hora é contingencial; poderia não ter sido assim, mas assim foi:

“Há narrativa dum acontecimento quando se dá algo inesperado, de surpreendente, sendo embora um possível: aleatório num campo de possibilidades delimitado. As várias personagens  duma narrativa “encontram-se”, em seqüências de acções várias, como se diz, e a narrativa “con-juga-as” numa como que “constelação”, feita de amores e/ou conflitos, de trocas entre diferentes, de diferendos. Para que “convenham” umas às outras, como amantes ou como rivais, fazendo “uma” narrativa, há-de haver algo que as “apropria na aproximação” mútua, em reciprocidade, as liga narrativamente, as destina umas às outras: algo que permite/dá o que se deu, que deixa ser as acções narradas, mas que não aparece nunca como tal. Podia não ser e tinha de ser: é o que nos seduz nas grandes narrativas da ficção como da história, quer ainda da nossa própria história pessoal, com tanto de aleatório, mas o sentimento posterior de que tinha de ser, foi um “destino” (mas nunca uma “pré-destinação”, teológica por excelência).” (Belo, Fernando, “A Metamorfose das Ciências”, Caderno de Filosofias, publicação da Associação de Professores de Filosofia de Coimbra, fevereiro de 1991.)

E é a partir de uma causalidade imanente que o ser-no-mundo do paciente pode tomar outra determinação.
Examinemos por um momento as palavras até aqui empregadas para caracterizar a metáfora — relação, comparação, transposição e transferência. Será que foi isso que aconteceu na sessão de Lúcia? Foram esses “mecanismos” os responsáveis pela percepção de algo novo — e, para ela, naquele momento, verdadeiro? Em Heidegger, (Ser e Tempo, Ed. Vozes, 1988, pág 64), lemos:

“Em sentido grego, o que é “verdadeiro”, de modo ainda mais originário que o logos acima mencionado, é a synthesis, a simples percepção sensível de alguma coisa.”

Lembremos que síntese — syn-thesis — quer dizer “duas teses (colocações) ao mesmo tempo”, ou seja, a simples justaposição de algo com algo. Foi esse o papel do terapeuta: juntar coisas e oferecê-las ao cliente, permitindo a emergência de um sentido ampliado — e, ao menos no momento de seu aparecimento, radicalmente verdadeiro para a paciente.

II

Vamos a um segundo exemplo. Na sessão de Lúcia a metáfora mostrou-se numa adjetivação atribuída a um elemento da natureza. Veremos em seguida uma outra possibilidade de aparecimento da metáfora.
Júlio havia brigado recentemente com a namorada. Ou melhor, a namorada havia lhe dado uma “dura”, dizendo-o acomodado no relacionamento. Júlio ficara bastante aborrecido e surpreso com a parceira, mas depois concordou com ela. Reconciliaram-se. Isto não o impediu, todavia, de ficar um tanto ressabiado. Tudo aconteceu um pouco antes da Páscoa.
Por ocasião da Páscoa, Júlio tentou fazer um ovo de chocolate para a namorada (como já o fizera em anos anteriores), mas não acertou o ponto de cozimento, deixando-o quebradiço. Embrulhou o presente assim mesmo e entregou o pacote à menina. Mas, ao mesmo tempo, deu-lhe um ovo fabricado industrialmente, comprado na bombonière. Disse ao terapeuta: “Entreguei assim mesmo, aos cacos”, com acento forte, denotando um misto de raiva e afirmação viril.

O terapeuta, atento ao fato, disse apenas: “Quer dizer que você deu a ela um ovo inteiro e um quebrado.” Júlio ficou olhando com um ar de quem percebe alguma coisa, mas não atina bem o quê. O terapeuta, então, optou por uma intervenção mais longa. Disse: “Imagine que você está lendo um romance. O personagem principal acabou de se reconciliar com a namorada, depois de um desentendimento mais ou menos sério. É Páscoa. Ele dá à companheira dois ovos, um inteiro e um quebrado. O que você acha que o autor estaria querendo dizer?”
O paciente sorriu e percebeu o duplo sentido do presente. Em outras palavras, assumiu a qualidade de “quebrado’ como uma metáfora. Em seguida relacionou o episódio com a ambigüidade de seus próprios sentimentos; poderia ter feito outras associações. Neste caso, podemos até dizer que o paciente percebeu o que o terapeuta queria que ele percebesse.
Mas, afinal, o que se faz em uma psicoterapia?

Hillman, em uma visão abrangente, define a análise clássica como

“um processo de tratamento numa atmosfera de simpatia e confiança de um pessoa por outra mediante pagamento, o qual pode ser concebido como educativo ou terapêutico em diversos sentidos e que procede principalmente através da exploração interpretativa conjunta de comportamentos habituais e de categorias de eventos mentais que têm sido tradicionalmente chamados de fantasias, sentimentos, memórias, sonhos e idéias, e onde a exploração segue um conjunto coerente de métodos, conceitos e convicções, originados principalmente em Freud e Jung, onde o foco é preferivelmente sobre o inesperado e sobre o material com carga afetiva, e cujo objetivo é o desenvolvimento (subjetiva e/ou objetivamente determinado) do analisando e o término do tratamento” (Hillman, James< Psicologia Arquetípica, Ed. Cultrix, pág. 75 – grifos nossos)

Embora seja possível ter objeções a tal definição, ela toca em pontos essenciais. Em primeiro lugar, coloca que a exploração interpretativa deve ser “conjunta”. O “material com carga afetiva” e o termo “inesperado” são tradicionalmente associados a um ponto de inflexão do discurso — os já citados lapsos de linguagem e de memória, tremor na voz, vacilação no falar, silêncios prolongados antes ou depois de determinado assunto, etc., Em linguagem moderna podemos falar de marcas de oralidade. Tratamos desses fenômenos, vistos agora como “inesperados”, rupturas no continuum do relato, ao citar Umberto Eco, página atrás.

A intervenção sobre a fala de Júlio não foi calcada em um ponto de inflexão do discurso, como no caso de Lúcia. Lembremos que ele relatou o episódio com um acento forte na voz. A atitude pouco usual de dar à namorada um ovo de Páscoa em pedaços — contada com “carga afetiva” — alertou o terapeuta. A figura de algo “quebrado”, culturalmente forte e quase inequívoca, permitiu a intervenção. A mesma palavra foi colocada em duas categorias — foi metaforizada, quando aplicada ao relacionamento afetivo. O terapeuta transportou o “quebrado” de uma categoria de concretude para um sentido figurado.
Mas pode-se dizer de outra maneira: a justaposição de significados adquiriu sentido para o cliente. (Nem sempre as coisas se mostram assim favoráveis, como já foi lembrado). Ficam postas as questões ligadas à compreensão tradicional do fenômeno: o novo sentido já existia “na cabeça” do cliente? Respondemos: não. Existia na cultura, enquanto possibilidade da Linguagem, que já estava aí, já vinha ao encontro dos mortais; já falava e tinha seu próprio e múltiplo ressoar. O chamado “inconsciente” não está “dentro” de lugar nenhum; já nascemos em meio a indetermináveis possibilidades de dar significado. Deste modo, seria possível conceber um inconsciente “fora” da mente. Mas não há necessidade de tal cabriola intelectual, visto que a disponibilidade da Linguagem supre satisfatoriamente a nossa necessidade de compreensão.

Ampliando agora a compreensão do processo de psicoterapia, David Cytrynovicz nos diz (Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, nº 4, pág 38):

“(…) nos encontros o psicoterapeuta deve auxiliar o paciente a desvelar suas próprias possibilidades e fortalecê-lo com o resguardo que lhe dê a suficiente segurança, confiança e coragem para assumir o risco e as incertezas inerentes à sua condição de ser-aberto. Nisto consiste o viver e é para isso que a psicoterapia deve apontar.”

E mais adiante, referindo-se à fala e ampliando também este conceito:

“Quando falamos, dizemos algo para alguém. Dizer algo que se nos apresentou relativo às coisas, aos outros e a nós mesmos. Dizemos do nosso desvelamento a alguém que, por ser como nós, é também desvelamento. Quando falamos, primordialmente compartilhamos algo. Quando falamos, desvelamos um mundo comum. Este algo que se nos desvela é uma totalidade que, desde o princípio, já tem sentido. Não é uma massa amorfa. É essa totalidade que pode, ou não, ser colocada em palavras. O significado das palavras não é, portanto, um rótulo colado a uma armação neutra, mas é a própria fonte de onde as palavras surgem, onde se alimentam e em vista da qual nascem, se desenvolvem, se modificam e morrem.”

É por haver essa totalidade que desde o princípio já tem (algum) sentido, por podermos desvelar (ou não!) um mundo comum, que as metáforas são possíveis.
Ficam ainda pendentes certas interrogações ligadas ao modo usual de conceber a psicoterapia: de algum modo Júlio fez tudo “de propósito”? Se o fez, como não percebeu o que fazia?. A isto tentaremos responder.

Observemos: que mundo Lúcia e Júlio desvelarão, a partir das intervenções terapêuticas? No caso de Lúcia, duvidará se já se sentiu acolhida, alguma vez, em sua vida? Mudará sua atitude frente ao marido? A excessiva atenção dada à saúde dos filhos pode retratar uma deficiência no acolhimento dado a eles?
E Júlio, pensará em seu namoro como já estando quebrado desde há muito? Talvez venha (com surpresa) a achar-se vingativo, qualidade que nunca atribuiu a si mesmo — ao contrário, sempre se achou “um bom sujeito”.
Note-se que as citadas relações estão estabelecidas por este que escreve, baseado nas associações mais comuns que os pacientes fazem, em geral de cunho causal e determinista, determinismo este não-contingente, mas presente desde sempre na cultura e apropriado (de modo deficiente, pode-se dizer) pela história de cada um. Esta mesma história pode tomar um sentido a partir de tais relações.
Esta apropriação é dita “deficiente” por constituir-se rapidamente numa “verdade” não-contingencial, segundo a tradição causal e determinista que encontramos na linguagem psicológica banalizada. Ficaria bastante fácil para Lúcia assumir que o mar “representa” um pai ou uma mãe poderosos e distantes, ou o mutismo e isolamento de seu marido. Do mesmo modo, Júlio poderá interpretar sua falha na cozinha como uma desfeita premeditada, “inconscientemente proposital”. Tudo é possível na tendência a identificar, via estereótipos (como “Inconsciente”), uma coisa com outra, visando encerrar o vazio angustiante da eterna procura de sentido. Mas é tarefa do terapeuta impedir esse fechamento da questão, dando à metáfora, na prática terapêutica, aquilo que nela há de mais nobre na Literatura — num só movimento, renovar o modo de perceber as coisas e o mundo.
Disse um sábio grego que o assombro é o início da filosofia. Algo de incompreensível precisa ser mantido para que a vida continue.

III

Lúcia e Júlio provavelmente chegarão na semana seguinte falando de assunto totalmente diverso. Sessões como as descritas, onde uma associação feliz (na visão do terapeuta) acontece, pode ter seu ressoar logo em seguida, muito tempo mais tarde ou nunca. Os caminhos da metáfora serão sempre imprevisíveis, mas, se adequadamente apropriados, espera-se que abram novas possibilidades de compreender e modificar a existência. Enfim, isto é a sessão: um tempo, um lugar e duas pessoas deixando que algo aconteça.
O relato de Júlio já estava anotado faz tempo. Guardei-o — como guardo a descrição de algumas sessões de especial interesse — para um futuro (e agora presente) texto.
Escrevi as notas sobre Lúcia no dia seguinte ao nosso encontro, melhorando o estilo e fazendo pequenos reparos nos dias subsequentes. Relatei sucintamente fatos da vida da moça, apenas o suficiente para a compreensão do assunto que dá título ao texto. Não esperei a próxima sessão com a cliente, pois queria captar o fenômeno (na medida do possível) tal qual se apresentou no momento.
A seqüência das sessões, que poderá ser escrita, mostrará os resultados — se é que houve — inseridos em estudos de caso. Mas isto é uma outra história, e fica para uma outra vez.