Apreciação de Luiz A G Cancello
Um músico angolano é barrado na fronteira da Suécia com a Noruega, onde tocaria num festival. Está sem os documentos necessários para entrar no país. Os guardas cumprem sua função, impedindo-o de prosseguir e deixando-o numa cela. Surpreendem-se com um indivíduo bem-educado, com inglês fluente, preto, sem registros de tráfico de drogas ou quaisquer outros crimes nas bases de dados europeias.
Enquanto espera na sala que lhe foi destinada, Kalaf – ele mesmo, o autor que é também personagem – vai fazendo diversos flashbacks, lembrando sua trajetória musical. Ele é um dos expoentes do kuduro, música angolana centrada nas palavras e na dança, influenciada pelo hip hop e popular nos subúrbios de Luanda e Lisboa, aqui abraçada pelos imigrantes africanos e mesmo por muitos jovens portugueses. Costurando a periferia das cidades com a cor da pele, a música e a dança, refaz sua trajetória identitária.
A segunda parte do livro nos apresenta outro narrador, Sofia, uma professora de dança, apaixonada pela cultura da ex-colônia. Ela é casa por conveniência com Kalaf, para que este possa obter a cidadania portuguesa.
Sofia vive uma história de amor com um brasileiro, com quem troca muitas ideias sobre música e cutura, fundindo assim três países com suas mútuas influências sonoras:
“Nada como uma canção de amor para nos ensinar a pedir desculpas, a ouvir, a corrigir, a perdoar. Precisamos de mais amor (no Brasil diríamos porra para sublinhar essa súplica).” Em resposta disse-lhe: “Em Portugal talvez um ‘precisamos mais amor, caralho’, seria mais incisivo”. Esse sim, faria passar a urgência de precisarmos de um amor filho e mãe, um amor horizonte, um amor chão, um amor estrela guia que nos livre dos nossos pecados, da cegueira, do absurdo. Um amor que nos seque as lágrimas e nos lamba as feridas mas que não esconda as cicatrizes pois estas nos são tão úteis como os livros.”
A terceira parte é a mais surpreendente. O autor dá voz a um dos guardas que o prendeu. Usando mais uma vez o recurso dos flashbacks, traça os conflitos do policial, que se questiona sobre sua vocação e sobre seus amores perdidos. Passo a passo ele reformulas o passado, retomando seu gosto pelo hip hop, e acaba por chegar ao kuduro, num percurso muito rico e bem escrito.
Gostaria de fazer algumas observações de cunho bem pessoal. Na primeira parte Kalaf faz um retrospecto da história do kuduro, apresentando ao leitor uma grande quantidade de compositores, bandas e cantores, além de uma descrição rica e contextualizada dos locais onde se apresentavam. Para mim, que não me identifico com o gênero, foi bem cansativo, embora reconheça o mérito do trabalho. Para quem se interessa em ir mais a fundo, todos os músicos ali citados podem ser ouvidos no YouTube. A banda de Kalaf, a Buraka Som Sistema, também está na plataforma, com um grande número de seguidores.
A trama se passa num só dia, o único acontecimento é a prisão de Kalaf e seus desdobramentos, todo o restante do texto ficando por conta das lembranças e pensamentos dos personagens. O livro é bem composto e bem escrito, como já assinalei. Fica pendente apenas um certo excesso de referências, sempre a meu ver, que fique bem claro. Um pouco menos de citações, limitando-se talvez às essenciais, tornaria o texto mais palatável aos não aficionados pelo kuduro e gêneros afins.