O Quadro


Luiz A. G. Cancello

Gosto de História da Arte. Estou longe de dominar o assunto, mas já li muita coisa e fiz um ou outro curso. Sempre fui atraído pelo período entre o final da Idade Média e o início do Renascimento.
Em 1434, o pintor flamengo Jan van Eyck pintou um quadro famoso, O Casal Arnolfini. Retrata um casamento da época. Há uma riqueza de detalhes, de objetos, mas minha atenção vai principalmente para o espelho convexo, que alguns entendidos entendem ser o objeto central da obra. Ali – e só ali – se veem, em forma de imagem refletida, o sacerdote e a testemunha da cerimônia, possivelmente o próprio pintor. Ao redor do vidro há uma moldura com as cenas da Paixão de Cristo, pintadas num espaço incrivelmente reduzido. Atento ainda para o belo e trabalhado lustre do ambiente, que está com apenas uma vela, onde caberiam sete ou oito. Esta particularidade também gera um sem número de interpretações.
Não pretendo descrever a pintura. Qualquer pessoa, digitando o nome do casal no Google, pode ver a imagem dessa preciosidade e acessar os incontáveis estudos sobre ela.
Sempre pensei em ver o quadro, que está na National Gallery, em Londres. Nunca entendi essa minha atração, mas não creio que seja o caso de procurar aí causas ocultas, pois sou apenas mais um, entre tantos, a me extasiar com a obra.
A oportunidade de estar na presença do retrato dos Arnolfini apareceu em 2012. Naquele ano fui a Paris com minha mulher. Antes mesmo da viagem já havia comprado uma passagem do trem que passa sob o Canal da Mancha, para passar um dia em Londres, especialmente para ver o “meu quadro”.
Chegou o dia. Esperava estar mais emocionado, mas me surpreendi quase frio, a cumprir uma missão há muito decidida. Entrei no museu, perguntei a uma atendente em que sala ficava a obra e fui até ela. Minha mulher tentava ler as reações do meu rosto.
Estava enfim frente a frente com o ilustre casal. Embora eu soubesse as dimensões da tela, fiquei um pouco decepcionado. Pareceu tão pequena! Nas pesquisas que fiz pela internet podia aumentar cada objeto pintado, vê-lo em detalhes. Agora, na presença há tanto almejada, percebi que teria de mudar meu estado de espírito. Não veria o espelho e o lustre em tamanho ampliado, mas em sua dimensão real. Além disso, nos museus há um limite de aproximação das obras, anunciado por uma linha no chão ou por uma fita presa em cavaletes. Não é possível pegar uma lupa e escrutinar cada pincelada.
Caberia aqui toda uma digressão teórica sobre os simulacros com que a web nos aprisiona e vicia, mas deixo tais considerações para outra hora.
Enquanto estava meio atônito, procurando o jeito adequado para apreciar aquela joia que me fez atravessar o Atlântico, percebi a movimentação atrás de mim. Era um grupo de adolescentes, guiados por um professor, como sempre acontece nos museus da Europa. Vinham estudar o quadro. O mestre me viu ali, olhando fixamente para a pintura, com o cenho franzido, talvez evidenciando minha desorientação, ou a procura de uma orientação. Resolveu me interpelar: – O que você vê nesse quadro?
Cacete, era justamente isso que eu estava procurando, o que ver, como ver, como me situar. Fiquei mais desconcertado do que já estava. Dei a primeira resposta que me veio à cabeça:
– Meu senhor, eu vim de muito longe para ver essa obra. Não estou disposta a ficar explicando nada neste momento.
Ele se virou para os alunos e disse algo depreciativo. Entendi que me chamou de “um observador emocional”. E saiu, acompanhado pela molecada.
Fiquei com uma raiva descomunal. Além da desorientação, agora tinha de lidar com um inglês que me ofendia e saía de banda. Minha mulher estava mais distante, quis me deixar só para usufruir o momento tão esperado, não percebeu a situação.Afastei-me do quadro, furioso, contei pra ela o ocorrido, fui dar uma volta no museu, para ver outras obras e desanuviar. Depois fomos almoçar. Pretendia voltar à National Gallery mais tarde, para olhar novamente a pintura, quem sabe encontraria o jeito adequado. Comemos um peixe à milanesa gorduroso, com batatas, tomamos uma cerveja horrível, demos uma volta e comprei um chocolate que me encomendaram. Mais tarde faria uma nova tentativa de me entender com os Arnolfini, ou com o Van Eyck.
O pior de tudo era ficar pensando obsessivamente nas respostas que eu poderia ter dado àquele professor. Até hoje as milhares de possibilidades infernizam a minha cabeça. Mas, ali em Londres, tentei esvaziar a mente para a nova investida. Lembrei-me de técnicas de uma ioga já esquecida, abracei minha mulher à procura de consolo, desviei os olhos para o pouco horizonte, respirei fundo e entrei novamente na National Gallery. Atravessei salas e salas e voltei ao motivo principal da viagem.
Um famoso revolucionário disse que a História acontece como tragédia e se repete como farsa. Ali, naquele momento da minha vida, a frase, mesmo deslocada de seu contexto, fez um enorme sentido.

Hoje, escrevendo muito depois dos acontecimentos, a partir de notas que tomei na época, surpreendo-me revendo os estudos sobre o Casal Arnofini na internet. Sinto o mesmo fascínio, mas não voltarei a Londres. O caso vai ficar no repertório das lembranças, compartilhadas com os leitores deste relato. Apesar de ler e me interessar pelos muitos perigos da rede, ainda não tinha vivido na pele suas consequências. Eu gostava mesmo no quadro ou de seu simulacro? Prefiro deixar a questão indefinida. Talvez nem tenha resposta. Em tempos de fake e pós-verdade, tudo pode não ser o que é.