O Mapa e o Território, de Michel Houellebecq

Apreciação intrigada de Luiz A G Cancello

Tive bastante dificuldade em encontrar um norte para comentar este livro.
Assim como nas outras obras do autor, o pintor e fotógrafo Jed é um personagem central forte. Ele domina a cena. É um solitário, eu diria quase autista, seguindo a linha dos livros de Houellebecq. Mas aqui há algo diferente, que espero deixar claro nas próximas linhas.

Uma das primeiras coisas que noto nos livros é se o texto me “pega”. Se não consigo parar de ler, se há fruição. Confesso que fui envolvido pelo sr. Houellebecq, e pergunto o porquê. O mundo que ele descreve não me atrai, o tipo de arte que Jed faz não me cativa, nada ali faz meu gênero. Li, no entanto, de uma assentada. Alguma ferramenta sutil na escrita do francês faz com que os olhos não se desprendam do livro. Arrisco: o autor lida muito bem com os tempos, com a alternância de fatos e recordações de Jed. Sempre há um ponto a ser esclarecido na sequência da leitura. O livro é dividido em três seções. A segunda parte dá uma reviravolta na história, que passa a ser contada sob outro ponto de vista, a partir de um acontecimento inesperado, sempre com o narrador onisciente. A mudança abrupta (e sempre muito bem narrada) intriga o leitor, que não sossega até (re)encontrar o fio do romance. As duas vertentes vão se fundir muitas páginas depois, e aí já se está mergulhado na trama. A última parte trata da velhice de Jed, sempre retirado, avesso aos eventos mundanos, solitário e excêntrico.

Em sua vida artística Jed passa por fases. Pinta cenas de encontros, reais ou fictícios, de pessoas famosas. Concebe quadros a partir de mapas do guia Michelin.

A entrada estava atravessada por um grande painel, deixando passagens laterais de 2 metros, no qual Jed expusera, lado a lado, uma foto de satélite das cercanias da rotatória de Guebwiller e a ampliação de um mapa Michelin Départements da mesma região. O contraste era impressionante: enquanto a foto de satélite mostrava apenas uma mistura de verdes mais ou menos uniformes salpicada por vagas manchas azuis, o mapa articulava um fascinante emaranhado de estradas departamentais, artérias pitorescas, panoramas, florestas, lagos e desfiladeiros. Acima das duas ampliações, em maiúsculas e em negrito, figurava o título da exposição: “O MAPA É MAIS INTERESSANTE QUE O TERRITÓRIO.

Mais tarde pintará ferramentas e objetos ligados a profissões simples. Filho de um arquiteto de certo renome, o protagonista vai se firmando nos círculos franceses das artes plásticas, com seus curadores e marchands, nem sempre retratados com benevolência. Jed terá de enfrentar as inevitáveis entrevistas sobre sua concepção de Arte.

Não encontraria nada muito interessante ou muito original a dizer, à exceção de uma única coisa, que por conseguinte repetiria em quase todas as entrevistas: ser artista, na sua opinião, era antes de tudo ser alguém submisso. Submisso a mensagens misteriosas, imprevisíveis, que poderíamos, na falta de termo melhor e na ausência de toda crença religiosa, qualificar como intuições; mensagens que nem por isso deixavam de governar de maneira imperiosa, categórica, sem permitir qualquer possibilidade de isenção — salvo perdendo-se toda a noção de integridade e todo o autorrespeito.

O autor introduz no enredo figurões do mundo artístico, político e industrial da França, além de milionários frequentadores de galerias de arte, mas nunca em papéis decisivos. Recorri diversas vezes ao Google para saber se eram personagens reais ou fictícios. Eram reais. Estão postos ali numa crítica cheia de ironia ao mundo cultural e financeiro do país.

A certa altura Jed pede a um escritor que elabore o texto do catálogo de uma de suas exposições. Esse homem é o próprio Michel Houellebecq, que aparece agora como personagem e assim permanecerá boa parte do livro, com uma vida muito diversa daquela que se lê em sua biografia. O recurso é intrigante, há de se fazer algum esforço para não psicologizar o trabalho. Em um encontro com o escritor, que prima por conceber personagens solitários e carentes de sentido para a vida, o pintor se espanta:

Havia na voz do autor de As partículas elementares algo que Jed nunca havia conhecido nele, que não esperava em absoluto encontrar ali, porque, na realidade, fazia anos que não encontrava aquilo em ninguém: ele parecia feliz.

Mais uma ironia e um pitaco de metalinguagem. Não há personagens felizes na obra do escritor. “real”. Autor, narrador e personagem fazem um jogo complexo, com muitas interpretações possíveis.
Há muito a ser dito sobre essa obra. O encontro de Jed com o pai, já doente, e uma visita que faz a Houellebecq, são momentos de uma rara densidade literária e existencial.
O mapa é mais interessante que o território. A partir de uma vida insossa, Houellebecq faz um grande romance.