
Luiz A G Cancello
Sou friorento. Tenho frio na cabeça, nas orelhas, na nuca. No inverno, em casa, uso moletom com capuz, por cima de camisetas, uma regata e outra de manga comprida, aflanelada. Todas as frestas da casa são corredores de vento, tento tapá-las, mas é impossível. O ar gelado é implacável, transpõe todas as barreiras. Pensei em contratar um engenheiro especializado em fluxos térmicos, ou coisa parecida, mas não encontrei referências no mercado.
Para trabalhar on-line, quando faço encontros com vídeo, uso um gorro de lã. Acho que é mais elegante que o capuz, pois este ficou marcado pelos extremos – ou traz a figura do marginal ou caracteriza o monge. Não é o caso de assumir essas personas.
Os tais ventos que cruzam meu local de trabalho também acham caminhos por lugares mais baixos, sob as cadeiras, esfriando pés e joelhos. As meias de lã resolvem uma parte do problema, mas as pernas sofrem, mesmo que eu use ceroulas. É impressionante a eficiência perfuratriz dos ventos invernais.
Queixei-me à minha companheira. Ela foi até o quarto e trouxe um pano de um vermelho escuro esmaecido, com motivos florais. “Põe isso aqui em cima dos joelhos”, sentenciou. Fiquei meio inibido, tentando ver a minha figura como se estivesse de fora, o gorro, o capuz, moletom, aquele pano que talvez já tenha sido berrante, agora atenuado, o corpo encolhido. “Só falta o escalda-pés’, pensei. Um velho digno dos calendários de parede dos anos 50. Chocante. Mas o frio falou mais alto e cobri os joelhos.
Demorou uns 5 minutos para o equilíbrio de temperatura se estabelecer. A sensação de conforto foi incrível, daquelas de fechar os olhos e se entregar. “Só saio daqui se for intimado”, resolvi.
Foi apenas um pequeno gesto, a oportunidade, ela estava passando ali, teve a intuição de achar a coisa adequada para a hora certa, um pano em desuso, guardado num canto do guarda-roupa, o ato mínimo que faz a diferença. Eu estava em frente à televisão, vendo tanta desgraça nos jornais, a pandemia e seu rastro de mortes, o governo e sua pavorosa maldade, quando um momento sublime se apresenta, no simples aquecer dos joelhos, um pedaço de tecido trazido por ela, só poderia ser ela, que sabe achar a magia na simplicidade.
Fiquei ali um bom tempo. É claro que tive de sair para tocar a vida, afinal tudo continua. Incorporei o pano à minha indumentária de inverno, compondo de vez a figura do idoso, agora sem me preocupar muito com as mazelas do tempo, de resto inevitáveis. Sempre posso voltar para a poltrona e cobrir os joelhos, sempre vou lembrar do gesto dela, talvez proponha um ritual: sento, chamo minha companheira e me queixo do frio, ela vai até o quarto e traz novamente o mesmo pano, até acabarem os invernos. Acho que não vai topar, há muitas outras tarefas para dar conta, não tem sentido ficar à disposição das esquisitices de um velho romântico. Farei o rito a cada vez na imaginação. Vou me sentar, deixar que um pouco de frio atinja as pernas, para então imaginar que minha companheira traz o manto e me cobre os joelhos. Receio que meu sorriso de beatitude não seja bem compreendido, mas vou explicar a ela, antes de começar o jornal.