Apreciação de Luiz A G Cancello
Até agora me pergunto por que resolvi ler a biografia do Paulo Coelho, escrita pelo Fernando Morais, logo eu, que só li, há muito tempo, “O Alquimista” e “Veronika decide Morrer”. Gostei do primeiro, é uma boa história; não apreciei o segundo.
O livro se intitula “O Mago”. Do fato, há alguma magia em se vender 100.000.000 de livros, mesmo sendo constantemente espinafrado pela crítica. O homem foi traduzido em mais idiomas que Shakespeare. É conhecido em todos os países e elogiado pelas pessoas mais improváveis.
Uma das coisas que chama atenção é a ousadia de Paulo Coelho. Ele parece não ter medo de tentar nada: empregos, drogas, modalidades de sexo, seitas religiosas e esoterismo, viagens precárias. Vai para o mundo com a cara e a coragem, beirando a irresponsabilidade ou a imoralidade, conforme o ponto de vista de quem julga.
A vida do personagem é atribulada. “Destinado” a ser engenheiro pelo pai, não se adapta ao mundo das matemáticas e do ensino formal e cai no mundo das artes. Desde sempre quer ser um escritor lido do mundo inteiro; sempre foi sua obsessão.
Passou por jornais, produtoras culturais, companhias de teatro, anotando minuciosamente suas experiências num diário, que, aos 60 anos, colocou à disposição de seu competente biógrafo. Eis um trecho significativo, que traduz de modo original seu desejo de universalidade:
“É muito importante saber que andei espalhando partes do meu corpo pelo mundo. Cortei unhas em Roma, cabelos na Holanda e na Alemanha. Vi meu sangue molhar o asfalto de New York e muitas vezes meu esperma caiu em solo francês, num campo de parreiras perto de Tours. Já descarreguei minhas fezes em rios de três continentes, reguei algumas árvores da Espanha com a minha urina e cuspi no Canal da Mancha e no Fjorde de Oslo. Certa vez, arranhei o rosto e deixei algumas células presas numa grade em Budapeste. Estas pequenas coisas — geradas por mim e que jamais verei de novo — me dão uma agradável sensação de onipresença. Sou um pouco dos lugares onde andei, das paisagens que vi e que me comoveram. Além disso, meus pedaços espalhados têm uma aplicação prática: em minha próxima encarnação, não vou me sentir só ou desamparado porque alguma coisa familiar, um cabelo, um pedaço de unha, um velho cuspe seco — estará sempre por perto. Semeei em vários lugares da terra, porque não sei onde vou renascer um dia.”
Antes de sua glória, Paulo Coelho passou maus bocados. Por conta de usar maconha, mais de uma vez foi internado pela família e tomou eletrochoques, tratamento bem ao estilo daqueles tempos. Envolveu-se com inúmeras mulheres e ocupações, sempre escrevendo para revistas e inscrevendo textos para concursos. Teve ainda problemas sérios com a polícia política.
Foi só aos 35 anos que “Diário de um Mago” rendeu-lhe alguma fama, seguido pelo sucesso espetacular de “O Alquimista”. A partir daí o mundo se abriu, e tantos outros livros vieram, como todos sabem.
A leitura vale pela habilidade do biógrafo em esquadrinhar uma personagem complexa, que transita de diversos fracassos a uma vitória estrondosa, por força de uma mistura de fé e obstinação. O misticismo e o trabalho andam juntos na trajetória do escritor. Não toma decisões importantes na vida sem consultar o I Ching, mas é extremamente contido e racional no cotidiano. Apesar de sua fortuna, vive sem luxos.
Uma figura que vale a pena ser conhecida pela pena brilhante do Fernando Morais.