O lugar originário: devaneios

Luiz A G Cancello

* Há um lugar onde todas as possibilidades humanas têm sua origem, o nada primordial, a Tábula Rasa primeva. A partir desse ponto zero o homem pode ser qualquer coisa, santo ou assassino, honesto ou ladrão, pedófilo ou educador, LGBT ou cis, fascista ou comunista. É preciso voltar a este sítio de quando em quando, para evitar o pecado do orgulho, de pensar em nosso jeito de viver como o único verdadeiro e significativo.
* A Natureza Humana já foi concebida de todas as maneiras possíveis, conforme latitudes, longitudes, épocas e condições históricas. A Natureza Humana primordial é a compulsão dos homens em formular uma natureza humana. Há de se planejar o retorno ao lugar inefável onde a primeira formulação ainda inexiste e suportar a diversidade daí advinda.

* A Tábula Rasa primeva é um ponto teórico, insustentável frente aos conhecimentos científicos atuais sobre genética e temperamento. Nascemos já com tendências a ver o mundo deste ou daquele jeito. Ela é necessária, no entanto, para conceber um ponto de vista comum onde ainda conseguíamos nos entender, onde a unidade era radical. Uma utopia do passado.
* Em algum momento da trajetória humana houve um ponto de inflexão, uma ruptura. A partir dali o entendimento deixou de ser possível. É preciso conceber esse lugar pré-babélico e olhar em volta, sentir a iminência da catástrofe. A volta é impossível, tudo já aconteceu. Importa, aqui, ter a dimensão do Acontecimento.

* Sou humano, nada do que é humano me é estranho, disse Terêncio. De algum modo participamos todos da aventura humana. Há quem discorde, há quem perceba sua vida apenas no limite entre o nascimento e a morte. Sentir o pertencimento ao fluxo histórico da humanidade necessita algum esforço, uma expansão do espírito, possivelmente certa entrega. É conveniente leitura consistente, sem dúvida um olhar atento e interessado para a arte, um conhecimento mínimo da sequência das civilizações. Algumas viagens são convenientes. Sair do tempo e espaço limitados pela vida cotidiana é uma tarefa para a vida.

* Muitos homens e mulheres desejam deixar um legado. Filhos, herança, escritos, obras de arte, túmulos suntuosos. Procuram ter a posse da eternidade, ou, ao menos, expandir seu tempo na Terra. Algo há de sobreviver ao desaparecimento do corpo e fazer parte da memória dos outros humanos. Os registros são muitos, escrita, imagens, vídeos, gravações. Alguns conseguem permanecer na História, outros nas lembranças das gerações de sua família e amigos, a maioria se dissolve no ácido do tempo. Se o bater de asas de uma borboleta pode causar um ciclone em outra parte do mundo, é possível pensar que todos fizeram sua parte, em graus e modos diferentes.

* O dilema entre individualidade e altruísmo configura um problema muito intrincado. É difícil decidir se alguém faz um bem coletivo em prol dos outros ou por se sentir bem com seu ato. Na maioria dos casos a distinção entre motivações egoístas e o verdadeiro altruísmo é impossível. Pretendeu-se achar o gene do altruísmo, e com isso determinar marca da autenticidade, mas aqui (e em tantas outras situações) a biologia e a experiência humana seguem caminhos diversos. Trata-se de saber como as pessoas experienciam o altruísmo, tanto aqueles que executam o ato altruísta, quanto aqueles que o avaliam. Em todo o caso, talvez o melhor caminho seja regozijar-se com o ato em prol do coletivo, dando pouca importância às motivações individuais.

* Depois da pós-modernidade, quando percebemos a falência das grandes teorias, a seta dos acontecimentos perdeu toda a linearidade. A ninguém é dado saber para onde se dirige a História. Estamos na época de estudar o Acaso e as teorias do Caos e da Emergência. Com o advento do Big Data, no melhor dos casos, conseguimos algumas medidas gerais e estatísticas, tendências a curto ou longo prazo, mas as causas nos escapam. Há quem insista em manter um corpo de princípios explicativos da sequência histórica, formando escolas de pensamento e correntes teóricas academicamente respeitáveis. É preciso ter muita fé para acreditar nisso.

* Sabemos hoje dos inúmeros enganos perpetrados por nossa percepção do mundo. O estudo dos vieses cognitivos e das falsas memórias mostram nossas escolhas sendo feitas primordialmente por critérios emocionais e subjetivos. Em seguida construímos argumentos lógicos para sustentá-las. A verdade escapa aos homens comuns, pertence ao método científico, seu único guardião. Sem essa ferramenta, paradoxalmente inventada por quem é incapaz de acessar diretamente a verdade, seriam impossíveis as descobertas das Ciências e de suas leis. Viveríamos ainda num mundo regido por superstições.

* Costuma-se dizer: somos pequenos perante a imensidão do Cosmos, a vida é um sopro frente à eternidade. Esquece-se o fundamental: só nós, homens e mulheres, pudemos conceber e medir o espaço e o tempo. Essas grandezas só existem porque as descobrimos ou inventamos e mensuramos. Somos os senhores dos conceitos e dos números. Em nossa alegada pequenez, somos, como humanidade, proprietários do tamanho do Universo e da infinitude das Eras. Enquanto indivíduos participamos dessa aventura, conforme a disposição e o pertencimento de cada um à realização humana.

* Resta-nos muito ou pouco. Entre nossa grande abrangência e falhas bisonhas, pretendemos estabelecer modos corretos de avaliar o mundo, a História, o comportamento alheio. É muita pretensão. O exercício de voltar à Tábula Rasa primeva é tão somente uma tentativa de resgate de um mito. Ainda assim mantém sua validade, pois nos é dada a linguagem e seu poder de inventar histórias. Talvez por aí possamos de novo nos entender e nos livrar, ao menos em parte, das discórdias intermináveis destes tempos. Se existe a salvação, se ainda há quem acredite em sua possibilidade e conveniência (ou mesmo em sua ética, ela pode ser indecente), este é um caminho. Se há outros, desconheço.

* Como exercício de positividade, suprimi a palavra “não” deste texto. E só escrevi a partícula “que”, a mim profundamente antipática quando usada em demasia, na citação de Terêncio, para ser fiel ao original. Este é um modo de marcar um ponto na minha salvação individual, por tentar contribuir para a reflexão coletiva, ou de afastar-me dela, pela egolatria implícita. É difícil distinguir entre o próprio umbigo e o umbigo do mundo.

Publicado no Facebook  em 21/10/2019