O Gênio e a Rosa

Luiz A. G. Cancello

Aconteceu que Demétrio, professor de matemática, passou em frente à floricultura, na terça-feira gorda, às quatro horas da tarde. A dona – ou seria uma balconista? – estava sentada no pequeno degrau de acesso à loja, olhando sem alvo definido em direção ao outro lado da avenida, talvez a se perguntar por que diabos havia aberto a loja em dia tão inadequado. Tímido por temperamento, reservado pela natureza de sua atividade, o homem tomou a atitude impensável: aproximou-se da moça e perguntou-lhe o que fazia ali, absorta, em dia de carnaval. Ainda nem refeito do susto que a própria ousadia lhe causara, obteve como resposta outra pergunta: “O que você pediria se achasse, agora, uma lâmpada com um gênio dentro?” Fiel ao conhecimento de sua ciência, respondeu-lhe que gostaria de obter mais três lâmpadas a cada pedido a que tivesse direito, e assim sucessivamente, até que as ruas se enchessem de lâmpadas e gênios, e começou, tendo em mente a área da cidade, a calcular quantos pedidos teria de fazer para abarrotar a via pública de inúteis recipientes de fantasias. Mas a florista, que começou a achar a conversa interessante, interrompeu-lhe o cálculo e perguntou se poderia colocar um gerânio em cada bico de lâmpada. Ele respondeu que sim, surpreso, dizendo-lhe que, desse modo, ela teria algo a fazer nesse dia em que o comércio estava parado, dando tempo às floristas para sonharem, com o olhar perdido do outro lado da rua. Passou um caminhão de som tocando “Máscara Negra”, ela desejou que tocasse “Estão Voltando as Flores”, mas o destino é caprichoso na escolha dos desejos que satisfaz.
“Por que você não me convida para tomar um refrigerante no bar aí ao lado?”, ela perguntou. Ele agradeceu intimamente a lembrança, pois não sabia mesmo como continuar a conversa, não tinha prática desses encontros inesperados. Ficou apreensivo, vai ver que a rua estava coalhada de lâmpadas, acabaria pisando e quebrando algumas, ia ser uma chusma de gênios desabrigados, a engrossar o coro dos sem-casa. Ela também hesitou, apesar de ter tomado a iniciativa; e se amassasse com os pés as tantas flores, causando protestos indignados das entidades ecológicas? Mas na rua só havia mesmo as lajotas habituais, ainda não era tempo de andar sobre a fantasia. Sentaram-se na mesa perto da calçada. O bar se chamava Zero Grau, o professor quase perguntou ao copa se a medida estava em Celsius ou em Fahrenheit, mas conteve-se. Pediu uma tônica, a florista quis uma soda, os primeiros goles foram tomados em silêncio. Ouviu a moça respirar fundo, tomando fôlego para dizer uma frase muito comprida, mas foi invadido por um pedido rápido e objetivo, “Por favor, não vai embora, fica comigo, este dia estava muito triste até você chegar”. Surpreendeu-se por não ficar surpreso, estava mesmo oscilando entre ficar ali mais um tempo ou dar uma olhada na livraria logo adiante. Convidou-a para irem ao cinema, mas não era possível fechar a loja, de onde estavam ela controlava a entrada de algum improvável freguês. Resolveram continuar o encontro na floricultura, voltaram e sentaram-se atrás do balcão, onde não eram vistos pelos passantes. 
“O que você pediria ao gênio?”, lembrou-se o matemático de perguntar à moça das flores. “Ele acabou de me trazer você”, respondeu ela sem afetação, e esta parecia ser a única resposta possível. Cada fala inesperada não surpreendia, era uma sensação que as coisas tinham de ser assim, o diálogo sempre estivera ali, atrás do balcão, à espera que aqueles dois o assumissem. “Que flor é aquela?”, perguntava ele, que nada entendia do assunto. “Dálias”, respondia ela, divertida com a ignorância do amigo. “E para que servem?” “Para enfeitar. Há flores para tudo. Umas enfeitam as noivas, outras enfeitam os mortos.” “Há flores para ornar os números?” “Essas eu não conheço, nunca vieram comprar aqui. Acho que os números não precisam de ornamentos.” Um bloco parou na porta e entrou na loja. Eram uns dez funcionários da Prefeitura, que estava em greve por aumento salarial. Denominavam-se “Bloco dos Esfarrapados”. Gritaram: “Abaixo o Prefeito! Duzentos por cento ou nada!” Demétrio sorriu, teve ímpetos de perguntar ao líder do bloco se ele sabia o impacto de um tal aumento nas contas do município, mas antes que o fizesse a moça ofereceu uma açucena a cada um dos foliões. “Por conta da casa, do amor e da alegria”, disse. O professor olhou rapidamente o preço de cada unidade, calculou mentalmente o prejuízo e pensou em pagá-lo antes de ir embora, mas nem sabia se e quando sairia da floricultura. Pediu mentalmente ao gênio da lâmpada que fizesse dali a sua morada.
Já eram seis horas da tarde, a moça fechou a porta quando o bloco saiu, ligou o alarme, voltou para trás do balcão e, quase telepática, disse ao amigo que ele agora era o gênio e estava com ela dentro da lâmpada. Não se sabe quem fez o primeiro carinho, os dedos roçando a face como se toca uma pétala, o sussurro leve como o vento que balança as folhas, as mãos sôfregas de quem procura a água debaixo da terra, ela finalmente sentiu a agulhada de uma flor que se colhe com delicadeza. O traçar ondulante de uma senoide, isto soava a Demétrio quase uma heresia, mas era assim que o seu cérebro formulava o movimento, cada um é conforme a sua natureza. Antes ainda do momento final a mulher estendeu o braço e deu-lhe um botão de rosa. Colheu das mãos da amiga aquela flor, aspirou-lhe o perfume enquanto todas as incógnitas do universo condensavam-se ali, e foi esta a primeira vez que o infinito mostrou-se a ele.
Na manhã da quarta-feira, em frente à floricultura, um menino de rua achou uma lâmpada de Aladin. Esfregou-a esperando um gênio, mas obteve um forte cheiro de rosas que o deixou perturbado e sonhador para o resto da vida.

Este conto está na página 147 do livro “Dia-a-dia: fragmentos”.
Foi publicado também no jornal eletrônico “Jornal de Notícias”, da Cidade do Porto, em Portugal.