
Luiz A G Cancello
O gato da minha casa esgueira-se pelas brechas. Não apenas nos espaços físicos, um intervalo minúsculo entre a cama e criado mudo, ou entre a mala jogada num canto e a porta aberta do armário. O gato da minha casa se insinua também nos espaços espremidos entre os atos e os discursos.
Aparece no meio de uma discussão, de uma fala amorosa, da feitura da lista do supermercado. Alguém interrompe o que faz para olhá-lo, alisá-lo, dizer alguma graça e tudo fica mais leve. É possível que passe com jeito soberbo e desdenhoso, ou pare, se atire no chão e exponha a barriga para ser acarinhada. Imprevisível, é um pontuador de momentos.
Pode estar dentro do armário, sob a mesa, numa caixa de sapatos ou encaixado na pia, seu ninho momentâneo. Cada fresta é um acampamento possível, talvez até se torne seu lugar predileto por um dia ou um ano. Mas ninguém se admire ao vê-lo enrodilhado no sofá, longe dos esconderijos. Há espaços e tempos que só ele conhece.
Às vezes se intromete nos sonhos, para alegria ou susto do sonhador e de quem gosta de interpretar peripécias noturnas. Nesse campo obscuro é associado ao mistério, aos ardis, ao que emerge das sombras. Pura injustiça. Ele é tanto solar como afeito à lua. Preenche todo o ciclo do dia.
Seus movimentos sinuosos são fonte de admiração, associados à leveza e à sensualidade. Nenhum bicho consegue se espreguiçar assim. Dizem os manuais que dorme a maior parte do tempo, mas pode acordar de repente e, num pulo, aboletar-se no parapeito da janela para olhar a paisagem. Lento ou veloz, conforme lhe dá na veneta.
Os veterinários, esses protetores, ensinam que há mais de vinte tipos de miados. Como eles sabem disso? Não sei se há, em nossa espécie, quem consiga distingui-los. É possível notar que mia se quer afago, mia se quer companhia para ir até a caixa onde faz xixi, mia se não há comida no pote, mia e fica encarando os humanos, sabe-se lá o motivo. Mia porque sim, ou não.
Gosta de ser acariciado, ao menos é o que se supõe, a julgar pela languidez com que reage aos agrados. Chega até a pedir carinho, puxando com a pata a mão dos humanos mais íntimos. Puxa também os fios da fazenda das camisas e camisetas, para júbilo dos lojistas, que identificam nos donos excelentes compradores.
Tem o hábito de se roçar nas pernas das cadeiras, no batente da porta, no baú de guardados. É sedutor, e muito, quando se esfrega na perna de um humano, vagarosamente. Mas calma! Cada coisa é uma coisa. Não se deve acreditar, de imediato, que faz isso para marcar território. Quando se insinua para seu dono é carinho, o resto pode até ser comportamento evolutivo.
Corre atrás de bolinhas de gude ou rolos de barbante, pode rolar no chão brincando com um tapete. Mas há dias em que, na presença de todos esses objetos, prefere ignorá-los com um misto de altivez e preguiça. Sem mais nem porquê, sai do ambiente e vai para outro lugar, exibindo calma e majestade.
Ele faz sempre as mesmas coisas e cada vez é original e surpreendente. O gato é uma epifania de repetição.