O frio e os friorentos

Luiz A G Cancello

Existe na sociedade uma série de preconceitos contra mulheres, negros, homossexuais, gordos e outros grupos oprimidos. Todos têm organizações para defender seus direitos. Proponho incluir mais um na lista: nós, os friorentos. Desde pequeno sinto muito frio. A idade só acentuou essa característica. Chegou a hora de lutar.
As pessoas comuns notam e se incomodam com a nossa sensibilidade às baixas temperaturas. As frases são sempre as mesmas: “Tudo isso é frio?” Ou: “Se vier esse frio todo, preciso me agasalhar.” “Cara, você tá de camisa de manga comprida?!” E a mais desagradável: “Tá doente?” Bullying descarado. Da próxima vez inventem uma piada nova.
No inverno sentimos um vento gelado em todos os ambientes, esfriando a nuca, as orelhas, o nariz. Não sabemos se vem dos espaços não vedados das janelas, dos vãos sob as portas, de alguma fenda misteriosa surgida nas paredes e na alma. Damos um nome diminutivo ao fenômeno, sempre o chamamos de “ventinho”. “Tem um ventinho aqui, vê se fecharam todas as frestas!”, é o nosso brado invernal. E dá-lhe gozação.
Nós, os friorentos, enfrentamos preconceitos de diversas naturezas. Por exemplo, o uso do capuz, indumentária que deveria ser obrigatória de junho a outubro, pois é um conforto indizível para nossa espécie. Protege a cabeça e suas partes sensíveis, principalmente as já citadas nuca e orelhas, traz acolhimento e proteção. O capuz convida a refletir, seus usuários andam meio curvados, de cabeça baixa. A humildade é sua marca. Os monges medievais sabiam das coisas.
Podemos também usar boina e cachecol. Menos eficazes que o capuz, são considerados mais elegantes, um parco consolo. O gorro também é de grande valia, principalmente quando cobre as orelhas. É verdade que, nos dois casos, a nuca fica desprotegida. Nenhuma dessas soluções passa despercebida pelos nossos detratores, que insistem em fazer as mesmas gracinhas.
E o frio insidioso que nos ataca entre as meias convencionais e a barra da calça? Há um recurso para remediar isso, as ceroulas, hoje mais conhecidas como “minhocão”. É preciso um grande cuidado ao usá-las, para que não apareçam nas canelas, quando cruzamos as pernas. A moda das meias curtas é cruel. Em geral as pessoas não fazem brincadeiras explícitas quando percebem que usamos tais roupas íntimas, mas a rápida olhada e a expressão jocosa de suas faces bastam para nos deixar mortificados. A camiseta regata sob a camisa, outra peça indispensável, tem a grande vantagem de não aparecer aos olhos insensíveis dos acalorados.
Não posso deixar de mencionar os problemas com o ar condicionado, invenção letal, se colocado em mãos descuidadas. A frase que mais nos assusta é: “Não dá pra aumentar um pouquinho o ar?” E os ventiladores, quando incidem diretamente sobre nós, que tormento! Ficamos procurando lugares onde o vento não chega. Em vão.
Pelos motivos expostos, e por tantos outros que não caberiam neste espaço, quero encaminhar a formação de um grupo de trabalho. Proporemos às autoridades um Estatuto dos Friorentos. Deixo redigido, desde já, um artigo imprescindível: “Está sujeito a prisão inafiançável quem maltratar, por meios físicos ou verbais, aqueles indivíduos suscetíveis a baixas temperaturas.” Mãos à obra! De luvas, é claro.