O Dilema das Redes

Luiz A G Cancello

Acesse aqui a ficha técnica do filme.

“O Dilema das Redes” é um documentário provocativo. Para quem acompanha os impactos políticos e psicossociais da tecnologia, os pontos são conhecidos. Causa espanto, aqui, a dimensão de algumas possibilidades, como romper o equilíbrio político e social de um país em nome do lucro de empresas. O assunto foi alvo de reportagens recentes na grande imprensa, com poucos comentários nas redes. Perdemos a capacidade de ficar surpresos?
Mas gostaria de destacar outro tópico, para depois voltar a isso.
Os entrevistados, pessoas que ocuparam cargos importantes no Google, Facebook, Youtube e Twitter, descrevem o presente como catastrófico e projetam um futuro distópico, mas hesitam em apontar um culpado por esse estado de coisas. Não existe o Grande Irmão ou Satânico Dr. No, responsável por todo o mal.
É importante, hoje, saber que os sistemas se desenvolvem em direções inesperadas, tanto em termos tecnológicos quanto sociais, que não raro surpreendem seus criadores. Para citar um exemplo do documentário: o botão “curtir”, de Facebook, foi criado para aproximar as pessoas. Ninguém supôs que muitos indivíduos ficassem escravos desse click, dependentes de uma quantidade xis de curtidas para terem alguma autoestima. As teorias da Emergência (no sentido de “aquilo que emerge”) procuram explicar e quantificar o modo como os sistemas crescem e adquirem sua complexidade. Steven Johnson, em seu “Emergência” publicado pela Zahar em 2003, coloca o subtítulo “A Dinâmica de Rede em Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares”. Note-se a abrangência do conceito A ideia é que todo sistema complexo se forma segundo leis gerais, passíveis de descrição em geral a posteriori, com muitas variáveis que fogem ao controle. Leonard Mlodinow, em “O Andar do Bêbado – como o acaso determina nossas vidas”, destaca os rumos imprevisíveis de nossa existência, denunciando as ilusões de controle em que acreditamos. A Economia Comportamental coloca a nu a pretensa racionalidade de nossas escolhas.
A importância de tais leituras é deslocar o pensamento das relações causais simplificadoras.  Tendemos a achar uma causa lógica para tudo, sejam nossos medos ou os males do mundo. Apontamos um culpado, a mamãe ou o Tio Sam, como se a vida fosse linear. Não é, embora ninguém seja inocente nessa história.
No início do artigo mencionei a perda da capacidade de nos surpreendermos. Os sistemas que se autodesenvolvem baseados em algoritmos, que aprendem e desenvolvem outros algoritmos (machine learning), está tão impregnado em nossas vidas que não os percebemos. Os especialistas entrevistados afirmam que não há quem abarque o sistema como um todo. Faz tempo que há um novo normal.
Como sempre, dividem-se as posturas frente ao quadro. Uns dizem que essa é a vida na pós-modernidade, onde todas as grandes teorias foram para a breca. Temos de assumir o mundo como se apresenta, usufruindo do melhor da tecnologia. Outros pensam que uma parte da essência do homem foi perdida no processo e é preciso recuperá-la, tarefa nada fácil. A estada se bifurca. Que destino escolher? Haverá um caminho do meio?
Para responder ao dilema precisaremos romper a divisão entre ciências “humanas” e “exatas”. O problema tem dimensões qualitativas e quantitativas, psicológicas e estatísticas, éticas e matemáticas. Assim como não há um Satânico Dr. No, não haverá um sábio redentor, capaz de nos tirar dessa enrascada. Só encontraremos a saída num esforço político, conjunto e global.

Artigo publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 05/10/2020