Luiz A G Cancello
Três ou quatro vezes por semana vou me exercitar. Coloco o fone de ouvido e, enquanto ando na esteira ou levanto pesos, escuto podcasts ou audiolivros. Evito a música, pois o som tocado nas caixas da academia atrapalha a boa audição.
Nas últimas vezes em que fui à ginástica resolvi encarar “O Diário de Anne Frank”, que eu nunca havia lido. Seria uma escuta de dez horas e meia, duraria umas doze a quinze sessões de 50 minutos. Comecei sem nenhuma expectativa. Eu estava preenchendo uma lacuna nas leituras, algo que deveria ter feito décadas atrás. Sempre achei que o relato da menina alemã devia ser apreciado na adolescência. Engano.
Ouvi o livro em intervalos e foi ótimo. Eu tinha a sensação de acompanhar o dia a dia da vida no Anexo Secreto, como Anne chamava o esconderijo em que a família precisou se alojar, em Amsterdam, para fugir à perseguição do nazismo.
Conforme o diário foi se desenrolando, eu ficava cada vez mais encantado com o texto da garota. Eram observações muito claras, sensíveis e inteligentes sobre muitos aspectos da realidade em que fora aprisionada. Imagine-se a escritora, sua irmã e seu pai, obrigados a conviver no mesmo espaço com outra família, composta pelo também adolescente Peter e seus pais. Outro homem chegou logo depois do início do confinamento, que durou dois anos. Não havia como escapar dos conflitos gerados pela situação, com as qualidades e defeitos de cada um se mostrando a cada dia.
Anne vai preenchendo seu diário, chamado de Kitty, como se fosse uma amiga íntima. Descreve com precisão cada personagem da casa, seus traços de personalidade, gostos, jeitos de falar e de se colocar ne cena. Depois de três ou quatro capítulos eu já os conhecia em detalhe, era capaz de imaginá-los, eram meus amigos de academia.
Os problemas de convivência foram aparecendo, um a um, destilados com graça e ironia pela pena da menina, às vezes com indignação, principalmente quando ela estava envolvida. Anne trata também de sua relação problemática com a mãe e de seu apego e admiração pelo pai e por sua cultura. Às vezes chega a ser impiedosa consigo e com os outros. É impossível ficar indiferente com os dramas adolescentes em sucessão.
Mas o relato não se restringe às relações humanas. A situação de penúria alimentar é sentida e relatada com cores vivas. Em certos dias havia apenas batatas meio estragadas e couve para as refeições. Os fugitivos tinham amigos que providenciavam os alimentos, mas nem sempre conseguiam burlar a vigilância dos nazistas.
A guerra chega a seus ouvidos por um rádio e pelos comentários dos adultos. Anne consegue ter uma visão abrangente da tragédia e, a partir daí, faz considerações apropriadas e perspicazes sobre a política e sobre os homens e sua natureza. Confidencia à sua amiga Kitty também seus sentimentos, sensações e dúvidas sobre amor e sexualidade. Em certos momentos é uma adolescente, em outros demonstra uma inesperada maturidade.
É incrível acompanhar o diário. Não é apenas um texto que foi achado no refúgio e divulgado para que se conhecesse uma experiência pessoal da guerra. Vai muito além. É também um testemunho de um tipo de cultura dos judeus da Europa Central e Norte, onde o estudo era valorizado ao extremo.
A escrita primorosa de Anne, uma menina de 13 anos, pode ser compreendida em parte quando se atenta para o nível cultural dos personagens. Em certo trecho do diário há uma relação das matérias a que cada um estava se dedicando. Eram muitas: mitologia grega, línguas (inglês, francês e holandês), geografia, literatura clássica, música (escutavam concertos no rádio, com regularidade), genealogia, política. A nossa autora diz, em outra passagem, que acabara de ler o primeiro volume de uma extensa biografia de Giordano Bruno. Anne se interessava também por artistas de cinema e pelas famílias reais da Europa, assuntos mais mundanos. Sua sede de saber é intensa.
Entre atividades aeróbicas, extensões de perna e flexões de braço fui absorvido pela narrativa de Anne Frank. A sequência temporal dos dias e dos exercícios me colocava em sintonia com as datas assinaladas no diário. Eu esperava a próxima sessão de academia para ouvir a sequência da aventura. E digo aventura, pois a adolescente escreveu que, apesar das dificuldades, estava tendo uma experiência de vida única, na idade dela. Era capaz de valorizar e tirar proveito intelectual e emocional de uma situação terrível.
Depois de doze ou treze sessões de esteira e musculação o diário chegou ao fim. Tive de me despedir de Anne, de sua vivacidade, de sua avidez pela cultura, de seus afetos e desafetos, mas principalmente de seu texto. Vai ser bem difícil achar outro livro para substituir o encanto da menina judia.
Foi muito bom ter lido (escutado!) o Diário depois de mais velho. Tenho hoje 63 anos a mais que Anne tinha na época. Às vezes ouvia o relato como um ancião atento, outras ela me parecia uma igual. Vejo-me numa sala do Anexo Secreto escutando seus dramas, o cotidiano, as reflexões, a fome, a guerra. Às vezes quero arriscar um palpite, mas me contenho. Entre o deleite e o horror, deixo fluir as palavras da garota, tão bem ditas pela narradora Joana Caetano. Essa mulher, para mim, foi a voz de Anne. Em pouco tempo soava familiar, uma amiga contadora de histórias, minha companheira de atividade física.
Volto para casa suado e pensativo, quase culpado por me encantar com o diário. Que nunca se repitam as condições em que Anne escreveu seu livro. Mas que livro!