O Diabo a Quatro

Luiz A. G. Cancello

Interessante sentimento esse, a perplexidade – talvez o único que eu não possa esperar que me assalte. Posso ficar na expectativa do medo, do prazer, da raiva, até da estranheza; mas quanto à perplexidade… posso apenas ficar perplexo com ela. Tal momento – um átimo – é um estado inteiramente Outro. Não corre em extremos, sai da linha; não se esgota em duas direções, sai da reta. Define uma geometria não-euclidiana: pelo seu ponto, não passa nenhuma paralela à reta dos pontos esperados.
Estranho estado! Que fazer? Agir na fluidez que ele traz? Esperar o tempo necessário para que se configure uma situação inteligível? Contemplá-lo, fundir-se com ele? Tentar defini-lo? Perguntas vazias! Para respondê-las, alguns têm me procurado – coisa que, aliás, freqüentemente me deixa perplexo.
Quem chega? Ah, é o senhor Fulano. Senta-se aqui, nesta cadeira; meio de frente, meio de lado. Um tanto desajeitado, vai tentando relatar os dissabores da existência, entremeando-os de silêncios; a própria vida. As mágoas, as raivas, raras alegrias. O corpo e a face nem sempre se movimentam em sincronia com o relato; dir-se-ia que por vezes traem um outro discurso, que se processa no íntimo dessa aflição aqui expressa; e nem mesmo ela lhe sabe precisamente o teor.
Um movimento menos harmônico interrompe Fulano. Assoma o desconforto ao ambiente; algo soa falso. Percebemos e comentamos. De um canto perdido da alma, algo brota. Primeiro nos olhos, que brilham; depois nos cantos da boca, que mal esboçam um sorriso meramente perceptual. Há vergonha, medo, ansiedade, vontade louca de abrir aquele baú fechado dentro do ser, mas há um limiar sutil, indefinível, aquém do qual toda a avalanche parece se deter. Uma palavra minha, pequena, hábil, e a barreira se rompe. Jorra do peito, da barriga, da garganta uma torrente límpida, fluente, que traz algo escondido — parece — desde sempre. Eu sou, agora, a figura mágica da testemunha; presencio o que nenhum outro mortal presenciou – o segredo loucamente oculto daquele homem; e é o meu presenciar que traz realidade à sua revelação. Eu sou seu, sou ele próprio, sou sua mãe, sou todos os homens. As palavras agora ditas, como um líquido de sutil penetração, permeiam as células da humanidade inteira. Tudo faz crer que era este o momento por ele e por mim esperado. Mas subsiste a sensação de que algo se perdeu, de que um encanto foi quebrado. De ora em diante, partilhamos os dois do algo fundamental. Participo eu de sua perplexidade, da perplexidade que é ele ao atentar para aquele Outro que lhe fala desde dentro.
Depois do primeiro impacto, percebemos que há ainda todo um trabalho para fazer. Começamos. Ora esperamos que a voz se manifeste, ora a forçamos e ela se zanga. Temos um diálogo a três, quando não a quatro; com o prosseguir da relação, aparece um Outro dentro de mim, o meu Outro. Uma reunião às vezes animada, outras aborrecida; tenho a sensação que os Outros são, na grande parte das vezes, os interlocutores mais loquazes. Há ocasião em que os sinto como se estivessem sentados ao nosso lado. Vejo-os com diversos jeitos, diversos rostos, diversos sexos. Em outros momentos, sinto que nos fundimos com eles; somos, então, nós e os Outros, talvez a mais fascinante modalidade de diálogo.
Sentimos agora que partimos para outra etapa, e precisamos redefinir a nossa missão aqui juntos. Percebo que devo silenciar o meu Outro, e ser a testemunha do encontro do sr. Fulano com o seu Outro. Sem mim, esse homem honesto, bom pai e bom esposo, certamente trapacearia: alteraria características de seu novo conhecido, o faria melhor do que é, e acabaria por moldá-lo à sua imagem e semelhança. Sinto em seu olhar o medo desse confronto que pode romper a eterna vigilância de si mesmo, a eterna tendência humana à auto-mentira.
Mas o que é isto? O meu Outro, sorrindo um sorriso demoníaco, arrebatando do ambiente a minha atenção e apresentando um estranho raciocínio. Minha mente vai-se desdobrando na marcha-a-ré do tempo; e entendo que, para poder apresentar fidedignamente ao sr. Fulano o seu novo personagem, tenho eu que ter sido, do mesmo modo, apresentado ao meu; e quem me apresentou ao meu deve ter sido apresentado ao seu, e assim por diante, até termos chegado ao primeiro apresentador das eras. O Criador, sendo um só, não tinha com o que ficar perplexo; não teve um Outro, e por isso fez o ser humano à sua imagem e semelhança. Esse Homem, talvez originalmente concebido para ser o inconsciente de Deus, converteu-se assim em sua genial trapaça. E nós, os analistas, somos hoje os autênticos sacerdotes, pois temos como função perpetuar a Trapaça Original através dos tempos. Passa-me pela cabeça a sabedoria de certos povos antigos, para quem havia mais de um Criador; havia dois, irmãos gêmeos, que posteriormente se dividiam – um se tornava o Deus, outro o Demônio. Como uma pancada, entendo o sorriso do meu Outro. A cabeça dá voltas; sinto uma espécie de vertigem. Tudo se passa como se eu voltasse de uma outra realidade. Cá estou, agora, caído nesta cadeira novamente, na República Monoteísta Burguesa do Brasil. Discretamente, olho o relógio, e vejo que a sessão acabou; é preciso parar, o outro cliente já deve estar na sala de espera.
— Até logo, sr. Fulano. Teremos nossa próxima sessão na quarta-feira. A propósito, aumentei o preço das consultas. O custo de vida, sabe como é?

Texto publicado na revista Rádice, ano 3, nº 13, Rio de Janeiro, 1980, p.38