O Corpo Interminável, de Cláudia Lage

Apreciação indigesta de Luiz A G Cancello.

Interminável: o adjetivo é bem escolhido. Há um peso constante sobre os corpos, a dor e suas consequências, tortura e seus desdobramentos, violações, o prazer, o enigma, sensações, fome. Tudo é denso, pesado, não passa, não termina.

Daniel escreve, Melissa fotografa. Encontram-se numa biblioteca, pesquisando a ditadura brasileira, cada um por seu motivo.
Melissa se espanta:

“Você escreve desde menino, ela diz. Uma criança, um pedaço de nada ainda, já envolvido com as palavras. Isso é assustador. (…) Para escrever é preciso dar um passo para trás, se distanciar das coisas. Como você conseguia, tão novo, essa distância. Há algo de perverso nisso, ou de extremamente inocente. Um menino com uma arma, um menino manipulando substâncias perigosas. Você sabia do risco?”

Os pais de Melissa também se espantam:

“Nos primeiros dias, vivi em euforia. A casa toda se tornou paisagem. Gostava de tirar fotos dos objetos mais rotineiros, como a minha caneca florida, às vezes cheia de leite, outras vezes com o restinho do líquido nas bordas e no fundo. Não reparava que nunca tirava da caneca limpa. Foi ela que reparou, você não tira foto das coisas antes de usadas e nem depois de lavadas. Por quê? Acho mais bonito, respondi. Ela nunca ficava satisfeita com as minhas respostas. A sua filha é esquisita, dizia ao meu pai.”

Esses dois jovens, cada um a seu modo perscrutando o mundo, encontram-se para compor o livro. Suas relações familiares estão presentes todo o tempo, em especial o continuum das gerações, desde avós até a possível descendência.
Bilhetes, carta e fotos se apresentam na costura do livro; memórias saltam, aqui e ali, sinais, signos. Documentos saltam de velhas caixas guardadas em estantes e armários. Um livro em especial, anotado pela mãe ausente, é precioso para Daniel. A autora compõe a história (e a História) com maestria, utilizando narrativas paralelas, indo e vindo no tempo. O relato às vezes é dele, às vezes de Melissa, outras vezes em terceira pessoa. Algo de terrível se esconde e vai sendo desvendado aos poucos, para se mostrar ao longo da escrita. Os personagens só adquirem seu pleno sentido no final da trama.
Os porões da ditadura brasileira são escancarados aqui, revelando o que foi dilacerado em cada vítima, a desumanidade no seu grau mais abjeto. Ainda assim, sobrevive-se, a vida pugna por continuar.

“A gente se pega sem palavras para apresentar o mundo ao nosso filho ou filha, como explicar a nossa hesitação e demora para ele ou ela vir, para falar disso temos que falar de todas as outras coisas. Vemos nas ruas os pais apontando, olha o céu, o sol, as estrelas, olha a árvore, o au-au, a flor, e nós, o que vamos apontar. A beleza das coisas, porque em algum momento a perdemos, percebo agora que fomos nós que desbotamos para elas, que elas continuam e não desbotam nunca, sempre há quem as vê. (…) desistimos cedo demais, cansamos cedo demais, agora temos que fazer um esforço, reaprender, de alguma forma, um respirar profundo, um sopro novo, e mostrar as árvores, os cachorros e as flores bonitas antes que seja tarde.”

O texto às vezes é muito denso ao descrever as sensações e o sofrimento psíquico dos personagens. Há passagens custosas de se ler, mas isto não é uma crítica. Dada a natureza do assunto, não há como fugir do terror.