O Choque

Luiz A. G. Cancello

Hermano acordou estremunhado, o despertador de pilhas reduziu-se ao silêncio num movimento automático do braço, espreguiçou-se. O elástico do pijama há muito perdera sua função; para levantar-se era preciso segurar as calças, esforço enorme àquela hora da manhã. Como de hábito, saiu da cama diretamente para o chuveiro. Dia frio, teria de atravessar o corredor, vestiu o roupão. Ligou um aquecedor elétrico dentro do banheiro, para aguentar a temperatura de julho, ao sair do box. Esticou-se e pôs a mão na torneira. Notou que ali estava passando uma corrente fraca. A lembrança de algumas tragédias contadas sobre choques ocorridos em pleno banho trouxe a necessidade de pensar em providências imediatas, antes mesmo de pedir ao eletricista um orçamento para examinar e consertar o fio terra. Seria necessário, ao menos, evitar o contato com o metal da manopla. Colocar fita isolante seria um serviço mal feito, a água logo a faria despregar-se, a cola deixaria a torneira melada, a mulher e os filhos reclamariam, como sempre, que nesta casa não se faz nada direito, está tudo caindo aos pedaços, a conhecida arenga vomitada a cada contratempo, todos esperando dele soluções eficientes e imediatas.
Enquanto a água o despertava, deixou que as ideias pipocassem. Lembrou-se de uma velha luva de borracha, atirada na caixa de ferramentas, jogada por sua vez na área de serviço, embaixo do tanque de lavar roupas. Não, os dedos ficariam sobrando, seria esquisito, alguém acabaria por puxá-los e rasgar a proteção da torneira, ali eram todos uns desastrados. A touca de natação de sua filha, enfim uma serventia para aquele objeto, deixado num canto do armário depois de a garota ter desistido de entrar na piscina, no começo do inverno. Cortaria um pedaço, mas a capa ficaria solta no eixo, perto da parede. Apertar as bordas com um barbante talvez desse certo, mas lembrou-se de que há meses pensava em procurar um cordão para prender o pijama em volta da cintura, entretanto jamais realizara este projeto tão simples. Provavelmente não iria completar o outro.
Depois de uma verdadeira tempestade cerebral de ideias estapafúrdias, a mais estranha delas impôs-se. Estivera parado num semáforo dias antes, rezando para que o carro velho não morresse, quando o pessoal de uma ONG, que alertava contra doenças sexualmente transmissíveis, começou a distribuir preservativos. Pegou o brinde mecanicamente, não via utilidade naquilo, pois era vasectomizado e fiel à esposa, mas evitou ser indelicado com os militantes da causa. Ali estava a solução, na gaveta do seu criado-mudo, a um corredor de distância. Acelerou o fim do banho, satisfeito com a lembrança. Enxugou-se, vestiu o roupão e, antes mesmo de secar o cabelo, foi buscar a nova capa da torneira.
Ao rasgar o envelope de plástico deparou-se com uma camisinha cor-de-rosa, translúcida, salpicada de talco. Foi fácil colocá-la em sua nova função. Abriu a água e fez o teste de eficácia do isolamento. Estava perfeito, acabara o choque. Quase foi chamar a família para que todos admirassem seu engenho, mas sentiu-se um tanto infantil. Além disso, Fabiana e Lucas estavam dormindo. A mulher, preparando o café da manhã, detestaria ser interrompida por tamanha bobagem. Ficou só, olhando com prazer para aquela invenção matinal.
Na hora do almoço, depois de voltar do escritório, notou um ar de riso no rosto da filha. Logo imaginou o motivo, mas nada disse, esperando que a menina se manifestasse. O garoto, de férias, acordara naquele instante, estava indo ao banheiro. Hermano logo ouviu uma exclamação em voz alta:
— Mas que porra é esta?!
Apesar de afeita à linguagem dos jovens, Guilhermina, a mãe, não gostava que se falassem palavrões em casa. Chamou a atenção do filho, que retrucou, de longe:
— A senhora não deve ter vindo ao banheiro hoje!
— Não falte ao respeito comigo. E, se ainda quiser dizer alguma coisa, venha até aqui.
Lucas apareceu na cozinha, onde a família fazia as refeições durante a semana, já com vontade de rir. O pai, calado, esperava pelo desfecho da conversa, esperando que lhe admirassem o engenho. A menina, começando a servir-se da salada, perguntou ao irmão:
— Você tomou banho?
— Ia tomar, mas…
— Já sei. Teve medo de que a torneira crescesse na sua mão.
Aquilo era demais. Sua Fabi, 15 anos, falando obscenidades na frente de todos. E o que saberia ela sobre o tal crescimento? Não é possível. Será…
— Querida maninha, confesso que me senti meio esquisito quando coloquei a mão naquilo. Mas a princesa aí não estranhou, né?
Hermano estava perplexo. Olhou para a mulher, que levantou os ombros e inclinou a cabeça, como a dizer: “Bem, foi você quem provocou tudo isso”. E o menino, está certo que já era dois anos mais velho do que a outra, tinha até licença para falar bobagens de vez em quando, mas o que estaria dizendo com “sentir-se esquisito”? Resolveu usar a autoridade:
— Vamos deixar de baixarias. Preciso comer e quero fazer uma sesta antes de voltar ao trabalho. Gostaria de almoçar em paz, se os engraçadinhos deixassem.
Na verdade ganhava tempo. Ficara atônito, sem ação, sem ter nada melhor a dizer, e ainda por cima decepcionado: sua habilidade em resolver o problema nem fora mencionada.
O almoço transcorreu em silêncio, entre olhares enviesados e risos contidos.
Depois da sobremesa, a caminho do quarto, fez um discreto gesto para que a mulher o acompanhasse. Em outros tempos ela entenderia o sinal como um convite, mas não agora. Levantou os olhos para o céu, haja paciência para com as trapalhadas desta família, tudo acaba mesmo nas costas da mãe, lá vem uma enxurrada de perguntas.
Hermano deitou-se sem ao menos colocar o pijama, como era seu hábito. Começou um inquérito sobre a vida sexual dos filhos, assunto que a esposa ignorava por completo. Guilhermina acabou levando uma reprimenda por ser tão alheia ao que se passava com a prole, mas respondeu à altura, acusando o marido de estar sempre ausente, ele deveria conversar ao menos com o menino sobre essas coisas, precisava dar mais atenção aos familiares.
— Ah, é? E que atenção vocês me concedem? Consertei o chuveiro, que estava dando choque, e ninguém disse nada elogioso. Nem você!
— Você chama aquilo de “conserto”? Colocar um preservativo na torneira? Você sabe, por acaso, se seu filho ou sua filha sabem usar adequadamente uma camisinha?
— O quê?! Sou eu quem vai ensinar isso a eles? E você está querendo dizer que a Fabi…
— Não quero dizer nada. Mas, nesta época, todos temos de estar prevenidos.
— Como assim, todos? Você também?
— Tenho escutado, na televisão, que as mulheres devem exigir de seus maridos que usem camisinha. Falando nisso, onde você arranjou aquela coisa? Não vai me dizer que a comprou de madrugada, só para consertar a torneira.
— Não, claro que não! Ganhei na rua, de um pessoal militante em uma ONG que trata de doenças sexualmente transmissíveis. Sem querer, eles talvez tenham ajudado a salvar três vidas.
— Sei. Devo agradecer-lhe por estar viva. Obrigada, caro gênio. Agora vou sair, tenho mais o que fazer. E você está com muito pouco tempo para dormir.
Depois que a mulher deixou o quarto, acertou o despertador para dali a vinte minutos. Gostaria de poder cochilar pelo menos durante meia hora, como sempre. Não conseguiu conciliar o sono. Sentiu falta do calor de Guilhermina, embora não houvesse clima para aventuras eróticas. Pensou em ter uma conversa com os filhos, mas não sabia como começar. Teve ímpetos de atirar a caixa de ferramentas pela janela do edifício, ao mesmo tempo em que um enorme desânimo impedia qualquer movimento. Resolveu tomar uma ducha quase fria para sair daquele estado.
Pegou na manopla e percebeu que a camisinha estava melada. Desconfiadíssimo, cheirou a gosma grudada em seus dedos. Não havia dúvida; tratava-se de condicionador, pelo odor e pela consistência. É claro que o filho tinha feito a gozação. Tal ideia jamais ocorreria a Guilhermina. Ou teria sido a filha? Afastou a hipótese da cabeça, perturbado com a possibilidade. Os dois haviam crescido, escapado de suas mãos, ele nem se dera conta. Agora permitiam-se participar do cotidiano doméstico de igual para igual, e isto causava-lhe um estranhamento quase insuportável.
De repente sentiu uma tremenda raiva da família, de si mesmo, do destino. Descontrolado, arrancou a camisinha da torneira, depois de três tentativas abortadas pela viscosidade. Com as lágrimas quase brotando, ia regular o fluxo do chuveiro a gosto, mas tomou um choque.
Alheio à temperatura, jogou o corpo sob a ducha, deixando a vida escorrer nas águas de dentro e de fora.