Luiz A G Cancello
Minha avó conhecia uma senhora que previa o futuro, diagnosticava doenças e prescrevia mezinhas, interpretando o desenho da espuma que se espalha na superfície da xícara de café. As formas aleatórias sempre se prestaram a mistérios – assim são as nuvens, a distribuição casual (ou não?) dos búzios atiradas no pano, o teste de Rosrchach. Perdoem-me aeromantes, mães de santo e psicólogos, cada qual com sua ciência, aqui juntos por semelhanças meramente ilustrativas.
Sempre fui descrente. Brincava com minha avó, queria conhecer a cafeomante, se bem que, segundo o dicionário, esta palavra se refere a quem faz previsões a partir dos traços deixados pela borra do café no fundo da xícara. Como hoje esse resto de pó não se forma, dada a eficiência dos coadores e à precisão das máquinas de expresso, passamos da profundidade à superfície, coisa de se pensar, quem sabe uma metáfora dos tempos modernos, também conhecidos como tempos líquidos.
Um dia cheguei na casa da minha avó e não me anunciei. Andei pelo corredor lateral até a porta de trás e a vi sentada na mesa da cozinha, com uma senhora que parecia estar em grande aflição. Fui fuzilado por um olhar terrível. Aquela voz familiar, sempre tão doce, grunhiu:
— Vá embora. Volte amanhã.
Percebi que não devia fazer objeções ou perguntas. Algo de importante estava acontecendo ali e minha presença era perturbadora.
Voltei no outro dia e fui recebido com a cortesia habitual, mas o semblante da minha avó estava diferente, um tanto misterioso. Não perguntei nada. Era uma questão de esperar e saber o que tinha acontecido. Ela passou um café, que tomei com gosto, aguardando a revelação. Dali a pouco começou a me contar.
A mulher que estava com ela na mesa era a famosa adivinha. Logo antes de eu entrar, provavelmente no momento que abri o portão, aquela senhora foi tomada por um mal-estar muito grande. Disse que havia por perto uma força negativa, zombeteira, atrapalhando seu trabalho. Quando entrei na cozinha minha avó logo percebeu que seu neto era o empecilho e me enxotou dali. Depois de algum tempo, a adivinha recobrou seu estado normal, seja lá o que isso signifique naquele contexto, e fez suas previsões e prescrições. Fiquei preocupado, confesso, e abalado nas minhas descrenças.
— E o que ela previu, vó? Por que você a procurou? Está doente?
Não recebi resposta. Certos acontecimentos devem ficar fora do conhecimento dos ímpios. Entendi, resignado.
Nos dias seguintes sempre dava um jeito de visitar minha avó. Procurava nela alguma alteração de humor, algo diferente no modo de andar, se estava mais magra ou mais encurvada. Mas nada acontecia, a velhinha parecia ótima. Passou-se uma semana, mais ou menos, e eu continuava inquieto. Numa das visitas me senti bem estranho. Era um daqueles dias em que o espírito está perturbado e não se sabe o motivo. Perguntei se estava indo ao médico regularmente. Fez um gesto largo com a mão, afastando simbolicamente os doutores, sentia-se muito bem. E indagou, sorrindo como quem sabe das coisas, enquanto preparava um café:
— Por que tanta preocupação?
Havia, decerto, um tom irônico na pergunta. Será que ela me escondia algum fato, alguma doença? Tentei desconversar. Enquanto esperava que xícara fosse posta à minha frente, senti um rebuliço interno. Disfarcei e fiquei firme. Estava decidido a não olhar para a espuma, mas seria difícil. Meus olhos esperavam a figura que iria se formar na superfície escura. Seria dada a mim, um cético agora vacilante, a graça de decifrá-la?
— Tome seu café antes que esfrie.
Enfim! Reconheci o tom habitual da minha avó. O choque de realidade daquelas palavras me devolveu a razão. A espuma ainda dançava, esboçando o desenho, e eu já virava o líquido goela abaixo, com toda a revelação que pudesse conter. Há coisas na vida que é preciso engolir.
— O café estava delicioso como sempre, vó.
O possível vaticínio, em sua passagem, queimou-me a língua. Era previsível.