Luiz A. G. Cancello
Meu primo mais velho, por parte da família paterna, já falecido, casou-se algumas vezes. Fosse inconstante, adepto da variação ou vítima das circunstâncias da vida, não importa. Quero falar de sua segunda mulher, bem mais jovem que ele, como de hábito.
Certa vez fui almoçar na casa do casal. Em volta da mesa, comendo, falávamos de… comida. Discutíamos se beber líquidos na refeição fazia mal ou não, e minha prima – assim vou chamar sua companheira – com a autoridade de estudante de medicina (ou já seria recém formada?), expunha as dúvidas que o tema suscitava.
Não sei como, o assunto passou para bifes e a maneira correta de fazê-los. Então, com a experiência de mãe (pois já tinha uma filha de um casamento anterior) e dona de casa, ela ensinou a todos: Não se deve ficar virando a carne, na frigideira. Primeiro deve-se deixá-la tostada de um lado e depois fazer o mesmo com o outro. E aí está pronto, é só servir, jamais se deve ceder à tentação de dar uma última virada.
Ora, sabe-se lá por que, isso ficou em algum canto na minha cabeça. Não sou bom com datas; acho que nessa ocasião os filhos homens do casal nem tinham nascido, quantas décadas se passaram! Hoje os dois devem ter mais de 30 anos.
Muito tempo depois, no final dos anos 90, próximo à virada do século, eu estava em casa com minha mãe. Morávamos em Santos. Com oitenta e tantos anos, ela apresentava problemas de locomoção, usando um andador para ir de um lugar a outro. Teimosa como era, por vezes se deslocava apoiando-se nos móveis e nos batentes das portas. E foi num desses dias que o fato aconteceu.
Sentado no sofá da sala, percebi que a D. Miú vinha de outro cômodo, segurando-se aqui e ali, sem o seu acessório de segurança.. Ao tentar passar as mãos da mesa para a cômoda, desequilibrou-se e caiu, batendo a cabeça na chave de um dos armários do móvel. Fez um talho feio no couro cabeludo. Quando a vi no chão, com o sangue correndo, corri para levantá-la, assustado, mas ela me acalmou. Disse, com voz firme: “Está tudo bem”. Palavras típicas daquela velhinha valente e segura de si.
Levei-a ao hospital, onde foi atendida por um médico carinhoso e paciente. Registrei para sempre o nome dele. D. Miú levou alguns pontos na cabeça, já não me recordo quantos. Tudo resolvido, voltamos para casa.
Lembro-me nitidamente de minha mãe sentada na mesa da cozinha, em seu lugar habitual, depois do ocorrido. De repente disse algo totalmente inesperado para o momento: “Tudo o que eu queria agora era um bife com pão”. Entendi que não se tratava de um sanduíche, mas de um suculento pedaço de carne acompanhado com nacos de pão.
(É curioso: Pensando hoje, distante dos acontecimentos, recordando-a sempre comilona e carnívora, aquele desejo não soa tão estranho.)
Talvez o desfecho seja previsível, mas faço questão de contá-lo. Eu, marmanjo mal acostumado, desde meus tempos de república estudantil não tinha fritado um bife. E naquela hora vieram-me à cabeça as palavras da prima, proferidas num longínquo almoço em São Paulo. Sabendo que em minha casa sempre se fazia a carne na manteiga, fui à luta. Peguei os ingredientes, a frigideira e segui aqueles conselhos, pinçados num ponto insuspeitado da memória.
Ao que tudo indica, o lanche improvisado ficou delicioso. D. Miú comeu com muito gosto, passou o pão no caldo que restava no prato e ficou eternamente agradecida.
Minha mãe sempre me elogiou e, não raro, aumentou os meus feitos. Desde esse dia, em algumas conversas sobre comida, não se continha: “O Luiz Antonio sabe fazer bife como ninguém”.
Até onde tenho ideia, não tive outras oportunidades para aventuras na cozinha. Se apareceram, evitei-as. Sou ainda um coroa mal acostumado. Ficou a fama – restrita ao universo materno, é verdade.
Escrevo estes fatos também com muito gosto, recordando passagens da vida de D. Miú. Penso em mandar este relato para minha prima, que mora hoje em outro estado e tem outro marido. Procuro-a pela internet, no Google e nas redes sociais, e lá está ela. Quero dividir o caso com uma de suas personagens fundamentais e, no mesmo movimento, dar a ela a responsabilidade de fazer parte da historia. Hesito em fazê-la assumir tal responsabilidade. Como receberá a passagem, por certo esquecida, de sua biografia – agora com consequências nunca pensadas? Escrevo a mensagem e anexo este arquivo. Sem pensar mais, aperto o ENTER.