Um diálogo com Heidegger e Foucault
Luiz A. G. Cancello
Resumo
O objetivo deste trabalho é realçar, no campo da Saúde Mental, mais especificamente na psicoterapia, os “’jogos de verdade’, que são colocadas como técnicas específicas dos quais os homens se utilizam para compreenderem aquilo que são”, no dizer de Foucault. Em muitos casos tais jogos são chamados de “teoria”. Propõe a fenomenologia existencial, entendida a partir da filosofia de Heidegger, por sua radicalidade em tentar apreender o real – no caso, o Outro – tal como ele é, como um horizonte de possibilidades para fugir de tais jogos. Nesse movimento, tenta ainda mostrar o modo de formação do terapeuta fenomenológico existencial – em palavras foucaultianas, como este profissional cuida de si.
Quanto mais passa o tempo, mais estranhamento me traz essa profissão de psicoterapeuta, isso de uma pessoa procurar outra para, falando, aliviar seus males. Meu espanto permanece, ao lado de uma familiaridade com a situação, familiaridade que me parece quase obscena. Tais dúvidas existem desde o início de minha atividade em Saúde Mental; a diferença é que, hoje, são expressas numa linguagem mais sofisticada e, possivelmente, são inseridas num contexto histórico-cultural mais abrangente.
Chego a desconfiar da competência de um psicólogo que não tenha tais dúvidas, mas talvez isto seja um exagero.
Não estou sozinho nessa perplexidade frente ao fenômeno. Ao contrário, estou muito bem acompanhado. Vamos ver como Aristóteles concebeu o assombro e a maneira como Heidegger o releu ,tantos séculos depois.
(..) foi pela admiração que os homens começaram a filosofar tanto no principio como agora; perplexos, de início, ante as dificuldades mais obvias, avançaram pouco a pouco e enunciaram problemas a respeito das maiores, como os fenômenos da Lua, do Sol e das estrelas, assim como a gênese do universo. E o homem que é tomado de perplexidade e admiração julga-se ignorante (por isso o amigo dos mitos é, em certo sentido, um filósofo, pois também o mito é tecido de maravilhas); portanto, como filosofavam para fugir da ignorância, é evidente que buscavam a ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária. (grifos nossos)
(Aristóteles, Metafísica, 982 b 10-30)
Para a continuação desta nossa conversa, será interessante reter especialmente a forma hedeggeriana de expressar-se, principalmente quanto ao significado de pathos. Este conceito de espanto acompanhará nossa conversa.
O espanto é, enquanto páthos, a arkhé da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé. Designa aquilo de onde algo surge. (…) a arkhé torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, o que impera (…) o espanto é arkhé — ele perpassa qualquer passo da filosofia. O espanto é páthos. Traduzimos habitualmente páthos por paixão, turbilhão afetivo. Mas pháthosremonta a páskhein, sofrer, agüentar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por. No espanto detemo-nos (être en arrêt). (…) O espanto também não se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua.
(HEIDEGGER, Martin. Que é isto – A Filosofia? São Paulo: Livraria Duas Cidades, 197, pp. 36-37).
Gostaria de deixar em suspenso, aqui, o significado de pathos: suportar, deixar-se convocar por, no sentido heideggeriano de se deixar con-vocar, de ouvir o chamado (vocare) junto a (com-). Quem chama o homem é o mundo, os entes do mundo – e os outros homens. Frente a eles paramos, pois é preciso um tempo para que os outros e as coisas se mostrem em todos os seus aspectos.
Num livro em parte autobiográfico, Ronald Laing, o famoso antipsiquiatra (como se autodenominava) também expressa suas dúvidas, neste caso sobre os valores que norteariam sua vida e sua profissão:
Sirvo a determinados valores, nem sempre com fidelidade ou constância, mas sinto-me ligado a eles, não posso fugir deles. Se sou incapaz de provar que estão corretos, não posso também provar que estejam errados. Não ofendem o meu bom senso, embora com freqüência estejam em oposição ao que parecem ser meus interesses, e certamente as minhas inclinações, a curto prazo.
Mas não as inclinações a longo prazo. Quero viver de maneira correta. Viver com correção não pode ser errado. Tem de haver um modo correto de viver. Esse modo deve estar de acordo com a natureza da vida e com a questão, seja ela qual for.
(LAING, Fatos da Vida. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982, p. 160)
Encontrei na fenomenologia um abrigo, onde posso duvidar com um pouco mais de sossego, ou buscar outro ponto de partida para isso de “procurar a verdade”, mas principalmente por ver que ali a atitude de estranheza faz sentido.
Na era pós-moderno minhas dúvidas vieram a se encontrar com o tempo – o tempo onde as incertezas e a fragmentação predominam. Ou, pelo menos predominam as descrenças sobre os metarrelatos, como nos diz Lyotard; voltaremos a isto.
Fui me afastando da idéia de que existisse um sistema pronto, “descoberto” por algum gênio a quem eu deveria prestar tributo o resto da minha existência, filiando-me e fechando-me em alguma “linha”, cujos conceitos eu tivesse de imprimir no psiquismo alheio. Na verdade, sempre me intrigou por que, somente no final do século XIX, tais sistemas foram “descobertos”. As condições “técnicas” para seu advento estavam presentes desde a pré-história: duas pessoas conversando, uma delas supondo que a outra tivesse um “algo mais” que lhe desse o poder de aliviar o sofrimento da outra, etc. O psicólogo, tal como o concebo hoje, é um dos agentes de cura que surge neste momento histórico:
Entre outras coisas, um agente de cura (healer) é usualmente uma pessoa para quem um indivíduo que sofre conta coisas; a partir de sua escuta, o agente de cura desenvolve a base para as intervenções terapêuticas. O agente de cura psicológico, em particular, ouve com o propósito de aprender e entender; e, do resultado de sua escuta, desenvolve a base para apoiar, prevenir, consolar, confortar, interpretar, explicar, ou seja, intervir.
(Jackson, Stanley W., “The Listening Healer in the History of Psychological Healing”, The American Journal of Psychiatry, Volume 1, Number 12, December 1992, pp. 1623)
Para compreender essa estranha situação, podemos seguir a psicoterapia através dos tempos de diversos modos. Freud mesmo escreveu uma história da psicanálise, e depois dele tantos outros de seus seguidores. Jung de outra forma o fez em seus estudos sobre a Alquimia, remetendo as raízes da ciência para tempos mais antigos. Os antropólogos o fazem ao estabelecerem continuidade entre as práticas xamânicas, as curas primitivas e o que se chamaria hoje de cura, como o fizeram (cada qual a seu modo) Mircea Eliade e Lévy-Strauss. Mesmo Hobsbawn, entre tantos outros, arriscou-se em situar historicamente a psicanálise, fundando-se no texto Viena fin-de-siècle, de Carl Schorske.
A leitura de Foucault, no entanto, nos traz uma visão peculiar. As duas fontes em que me baseio são seus livros “Os Anormais” e “A Hermenêutica do Sujeito”, mais que em sua famosa “História da Loucura”. Posteriormente falarei de seu conceito de “Cuidado de si”, exposto em parte no segundo texto citado e nos três volumes da “História da Sexualidade”.
Por que Foucault? Por que sua leitura me encanta (retomar o encanto / espanto), me coloca em suspenso e me soa como verdadeira, num certo sentido – o sentido de a-letheia. Adiantando e entrando num círculo, vamos ao conceito, ao modo fenomenológico-existencial de encarar o homem e seu defrontar-se com a verdade: (lembrar 1999)
A-letheia
De acordo com a visão heideggeriana, o homem é um ser aberto para o mundo; este, a cada momento, vem ao seu encontro. É um movimento de mão dupla. Assim vive sua vida, ora des-cobrindo, ora distraído, deixando que apareçam ou que passem desapercebidos os entes intramundanos.
O indivíduo é lançado num mundo já constituído, onde circula por uma dada linguagem, ali presente muito antes que sua existência viesse à luz. É condenado a viver no tempo, entre as coisas e os outros homens, com quem co-existe, com um projeto e um passado. O projeto ressignifica o passado, que por sua vez modifica o projeto. Outros homens, coisas, passado e futuro constantemente se desvelam, mostrando-se em sua pluralidade, como todo fenômeno. Assim, uma pedra pode mostrar-se ao caminhante como obstáculo, ao geólogo com um dado na história da Terra, ao escultor como possibilidade de uma estátua.
Um fenomenólogo diria, mesmo, que, ao fazer a estátua, o artista está libertando, na pedra, a possibilidade de estátua que ela (também) é, e que a ele se desvela.
A pedra, para cada um deles, é algo diferente. Por incrível que pareça, ao escutar a palavra “pedra”, todos sabem identificar o objeto a que se refere; por isso, Hannah Arendt afirma que o principal atributo do mundo é o fato de ele ser percebido em comum por todos nós[1].
Todos eles – caminhante, geólogo, escultor, poeta – descobrem a pedra no meio do caminho; para todos, e para cada um a seu modo, a pedra é verdadeira. “Des-cobrir é um modo de ser no mundo” (HEIDEGGER, 1988, § 44, p. 288). A pedra — que já estava ali há muito tempo — agora se revela, trazendo consigo a possibilidade de ser ela mesma e de remeter a outra coisa: obstáculo, dado geológico, estátua, poema. Mas, para que isso aconteça, para que tais verdades se mostrem, nossos des-cobridores não poderiam estar distraídos. Uma atenção, ainda que difusa, precisaria estar presente. Heidegger (1988, §15, p. 111) a denomina circunvisão[2].
São estas, em termos simples, as condições para o advento da a-letheia. Em dado momento, algo “salta” do pano de fundo indiferenciado onde repousam as coisas, e toma uma configuração significativa, aparecendo como inequivocamente verdadeiro, como se já estivesse ali. Num segundo momento, tal experiência pode ser traduzida pela linguagem — ou mesmo ser despertada pelos ensinamentos de um mestre. “As palavras levam-nos a “recordar” as coisas que já conhecemos e incentivam-nos a procurá-las novamente, mas não são responsáveis por esse saber. A palavra, dirá Heidegger, não é sinal mas faz sinal, acena-nos, para que possamos ouvi-la como deve ser ouvida” (GMEINER, Conceição N, A Morada do Ser, Santos, Ed. Leopoldianum / Ed. Loyola,1998, p. 79).
(Texto extraído de Cancello, Luiz AG, “Informal, Nômade, Tradicional: os psicólogos psicoterapeutas e seus grupos de estudos. São Paulo, Summus Editorial, 2007)
Foucault me encanta por abordar a História de modo peculiar. Ele não relata uma simples sucessão de conceitos que derivariam uns dos outros; sua cronologia não tem uma continuidade, como se a sucessão dos fazeres humanos obedecessem a alguma lei. Não tece uma teoria da História. Ele descreve as condições de possibilidade da emergência de certos saberes em determinados períodos. Muitas vezes vai atrás de documentos não oficiais, de relatos e laudos médicos perdidos em alguma província francesa obscura, por exemplo, para resgatar os procedimentos da época; assim o fez em “Os Anormais”, a melhor introdução à História da Psicopatologia que já li. Em suas palavras, em outro texto:
Meu objetivo, depois de vinte e cinco anos, é esboçar uma história das diferentes maneiras nas quais os homens, em nossa cultura, elaboram um saber sobre eles mesmos: a economia, a biologia, a psiquiatria, a medicina e a criminologia. O essencial não é tomar esse saber e nele acreditar piamente, mas analisar essas pretensas ciências como outros tantos “jogos de verdade”, que são colocadas como técnicas específicas dos quais os homens se utilizam para compreenderem aquilo que são.
(in: Hutton (P.H.), Gutman (H.) e Martin (L.H.), ed. Technologies of the Self. A Seminar with Michel Foucault. Anherst: The University of Massachusetts Press, 1988, pp. 16-49. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écris. Paris: Gallimard, 1994, pp. 783-813.)
Para tornar-se um jogador daquilo que chamamos de psicoterapia, para que forme esse peculiar agente de cura da modernidade, para que ele acredite em certas verdades, supõe-se que passe por alguns procedimentos e rituais. Vamos a eles.
*2 – O Tripé:
Quase todas as abordagens terapêuticas, ao formarem seus membros, adotaram o tripé de procedimentos preconizado pela International Psychoanalytical Association: análise pessoal, estudo da doutrina e supervisão. Em 1923, quando Freud ficou doente, os analistas resolveram estabelecer um modelo de formação, pois temiam que o mestre não pudesse mais orientá-los.
Apressou-se então em formalizar o processo de formação dos analistas, cabendo à clínica de Berlim propor o famoso tripé: análise didática, supervisão e cursos, até hoje mantidos pela IPA (International Psychoanalytical Association).
PIMENTA, Arlindo Carlos. Freud: formação do analista e transmissão da psicanálise – evolução histórica. Reverso. [online]. set. 2006, vol.28, no.53 [citado 13 Setembro 2008], p.13-16. Disponível na World Wide Web: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952006000100002&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0102-7395.
Na prática há outros procedimentos. No meu livro “Informal, Nômade, Tradicional” mostro que os psicólogos, ao menos no Brasil, participam também de grupos de estudos com muita freqüência e relatam que tal prática é de fundamental importância para sua formação. Alem disso, o profissional que quiser ficar inteirado do que acontece em seu campo não pode prescindir da leitura das pesquisas acadêmicas sobre psicoterapia – o que é uma tarefa difícil, dados os inúmeros (e não muito convincentes) métodos já tentados para avaliar a eficácia dos procedimentos curativos em Saúde Mental. O tripé, portanto, transforma-se num “pentapé”, se é que existe tal termo, apesar da pouca afinidade dos profissionais com leituras de pesquisas, fora do contexto acadêmico.
*3 – Foucault: espiritualidade e método.
Mas como chegamos a isso? Seguindo a esteira de Foucault, vemos que os homens sempre se examinaram, à procura de algo além de si mesmos, de verdades transcendentes, para, ao final, entenderem sua própria natureza.. Para tanto estudaram e se envolveram com as mais diferentes religiões e seitas. Nesse caminho elaboraram diferentes práticas para atingir a Verdade: ascese, retiros, orações, práticas caritativas, flagelação corporal, etc. – em suma, diversas operações sobre seus corpos e suas mentes, com o fito de aperfeiçoar-se para, enfim, contemplarem a Verdade e assim iluminar-se, entrar num estado de bem-aventurança ou algo semelhante. Depois de passarem por esse processo muitos deles viriam a se tornar mestres e não raro agentes de cura. Este estado de coisas perdurou até o século XVI. Com a difusão e os sucessos do método científico, codificado por Galilileu e Descartes, a verdade passou a ser atingida com a aplicação correta do método. Isto significa que nenhuma operação sobre o sujeito precisaria ser realizada; um mau-caráter ou um indivíduo absolutamente desprovido de transcendência poderiam, com o procedimento adequado, chegar à verdade. A formulação de Foucault é brilhante:
Se definirmos a espiritualidade como um gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz da verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito.
(Foucault, M., A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 24.)
A partir do dia em que ocorre a transformação citada por Foucault, entramos definitivamente no domínio da técnica. Heidegger postula que essa ruptura já vinha anunciada há séculos, desde os escritos de Aristóteles e Platão. O filósofo procura a maneira originária de acesso ao Ser em escritos dos pré-socráticos, mas este ponto, apesar de sua importância não entrará em nossa discussão agora. Basta-nos constatar o consenso, entre todos os estudiosos, de que o surgimento do método científico alterou profundamente nossa maneira de ver a vida e a constituição de nossa subjetividade. Não é à toa que uma das matérias do curso de Psicologia se chama Teorias e Técnicas Psicoterápicas. Vamos a isso.
*4 – A Questão da Técnica em Heidegger
Se pensarmos a técnica a partir da palavra grega téchne e de seu contexto, técnica significa: ter conhecimentos na produção. Téchne designa uma modalidade de saber. Produzir quer dizer: conduzir à sua manifestação, tornar acessível e disponível algo que, antes disso, ainda não estava aí como presente. Este produzir, vale dizer o elemento próprio da técnica, realiza-se de maneira singular, em meio ao Ocidente europeu, através do desenvolvimento das modernas ciências matemáticas da natureza. Seu traço básico é o elemento técnico, que pela primeira vez apareceu, em sua forma nova e própria, através da física moderna. Pela técnica moderna é descerrada a energia oculta na natureza, o que se descerra é transformado, o que se transforma é reforçado, o que se reforça é armazenado, o que se armazena é distribuído. As maneiras pelas quais a energia da natureza é assegurada são controladas. O controle, por sua vez, também deve ser assegurado.
(Heidegger, Martin (1972), .Uma Carta.. In: O Fim da Filosofia ou a Questão do Pensamento. Trad. Ernildo Stein, São Paulo, Duas Cidades; apud Critelli, Dulce. Martin Heidegger e a essência da técnica in Revista Margem, São Paulo, nº 16, p. 83-89, dez. 2002:
Concebendo o mundo sob o viés do controle, que implica em mensuração, estabelecimento de causalidade e dominio do tempo e espaço, úteis para lidar com os objetos, o homem acaba por representar o mundo:
Representação é a recriação do real na medida do cálculo da razão. O real é a reconstrução calculadora do real: re-presentação do real. Em outras palavras, o real é a idéia do real. A representação calculadora, portanto, não olha para o real a partir dele mesmo, mas das possibilidades representativas da razão.
(Critelli, Dulce. Martin Heidegger e a essência da técnica in Revista Margem, São Paulo, nº 16, p. 83-89, dez. 2002)
Assim nossos clientes, mesmo os mais humildes, homens de sua época, presas da subjetividade contemporânea, crêem que tiveram um “trauma de infância”, causa mágica de suas desditas; bastaria acessá-lo e “desligá-lo” para que vida se transforme. E perguntam “quanto tempo vai durar” o processo psicoterápico, prenhes que estão do utilitarismo e da urgência. Escutamos o “por que sou assim?”, como se as respostas de uma vida coubessem em algum procedimento técnico de busca das causas. Falam em si mesmo usando a metáfora da energia, como alguns psicoterapeutas, pois só podem conceber-se como máquinas termodinâmicas.
Critelli prossegue, em busca de uma alternativa, seguindo os passos de Heidegger:
Seria preciso que pudéssemos ouvir um outro chamado que não esse que brota do hábito do controle,da representação controladora, da interpelação produtora. Ouvir esse outro chamado implicaria que pudéssemos estar livres desse hábito, desgarrados dele. Ouvir outro chamado e descobrir outra possibilidade para nosso destino histórico, outra possibilidade para cuidarmos do ser exige uma passagem pelo silêncio. Exige uma parada no vazio, onde se possam esmorecer as determinações, os vícios da técnica, as explicações da ciência… Ouvir um outro chamado significa tampar os ouvidos para o mesmo, para o que já se sabe. Ficar em silêncio. E o silêncio é passagem.Tempo de esvaziamento e disponibilidade para a nova palavra, para a nova luz, para o novo apelo. O novo caminho para o Ocidente é a abertura para o que lhe é inaudito e desconhecido. Especificar esse inaudito é impossível, exatamente por ele ser inaudito. Por isso o gosto e o cheiro de aventura que exala.
(Critelli, Dulce. Martin Heidegger e a essência da técnica in Revista Margem, São Paulo, nº 16, p. 83-89, dez. 2002)
A técnica constituiu nossa subjetividade ocidental, fundada no sucesso na lida com o mundo físico (com os objetos). Questiona-se se esse modo de acesso é o mais apropriado ao homem, esse ente que procura o Ser. Para se tentar um outro modo de acesso, que atinja a vida sem passar pela representação, é preciso um exercício de se livrar do condicionamento que a técnica impôs à nossa visão de mundo, sem com isso desprezar aquilo que de “bom” a técnica nos trouxe, sob a forma da ciência e da tecnologia.
Correndo paralelo à técnica, a idéia de progresso – que em Psicologia tantas vezes chamamos de desenvolvimento – também é constituinte da modernidade:
(…) o tempo iluminista identifica-se com o conceito de progresso, do latim pro-gredior, “ando gradualmente para a frente”. Sucessão e razão, e também contínuo e subjetividade, o conceito de progresso é, talvez, a primeira determinação temporal propriamente histórica, moderna, no sentido de que a sua conceituação não pressupõe o divino, a teologia e as formas participativas da analogia. Sua invenção no século XVIII é, também por isso, a invenção do “mundo histórico”, em que todo futuro é objeto de planificação, com a finalidade sempre alegada de realizar‑se uma transformação qualitativa da vida. (…) Por sua vez, é aqui que a história aparece como uma disciplina moderna (…)” (Hansen, João Adolfo, “Pós-Moderno & Cultura”. In Chalub, Samira, Pós-Moderno &. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994, p. 40)
É interessante, neste ponto, examinarmos algumas formulações de que a Psicologia foi vítima, concepções que hoje a muitos parecem descabidas, todas elas ancoradas nas concepções de controle, reificação, mensuração, causalidade estrita, na tecnificação do fazer humano.
Comecemos evocando a ajuda de Roland Barthes:
Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado mantêm, para ele, relações naturais. Pode exprimir‑se esta confusão de um outro modo: todo o sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema factual, quando é apenas um sistema semiológico. (Barthes, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 8ª edição, 1989, p.152)
Examinemos alguns equívocos, principalmente aqueles onde conceitos foram reificados, metáforas tomadas como realidade, analogias transformadas em homologias, mapas confundidos com territórios:
O problema principal é que as metáforas utilizadas por Freud ou por outros são tornadas literais. Peguemos o caso dos lacanianos. Lacan, por exemplo, nunca disse que o inconsciente tinha a estrutura de uma linguagem, mas que era estruturado como uma. Ora, esta analogia entre inconsciente e linguagem foi tomada como a afirmação de uma identidade. Logo, o inconsciente foi, novamente, transformado em um fato, um fato lingüístico. E, assim, toda e qualquer teoria sobre a linguagem foi invocada a fim de estudá-lo. Porém, o contra-senso desse empreendimento salta aos olhos: tornar o inconsciente idêntico a uma linguagem significa transformá-lo em um domínio absoluto da consciência. É, por fim, negar a sua própria existência.
(Roustang, François “Sur l’epistémologie de la psychanalyse”. In: Le Moi et l’Autre, Mannoni, M. ( org. ). Paris: Denoël, 1985; grifos nossos)
Ou ainda, evocando longamente o Reich dos anos 30 e 40:
Os músculos que tomam parte no encouraçamento do peito são os intercostais, os grandes peitorais, os músculos dos ombros (deltóides) e os que estão sobre e entre os omoplatas. A expressão da courtaça toráxica é essencialmente de “autocontrole” e “contenção”. Os ombros jogados (echados) para trás expressam literalmente “contenção”. Junto com a couraça do pescoço, a do peito expressa “rancor” e “rigidez cervical”, ambos suprimidos (também aqui devem tomar-se estas expressões em seu sentido literal). Na ausência de uma couraça, o movimento expressivo do quarto segmento é o de um “sentimento que flui em liberdade”. Em presença de uma couraça, a expressão é de “imobilidade” ou de “impassibilidade”.
A dilatação crônica do tórax se dá junto com uma tendência ao aumento da pressão sanguínea, palpitações, angústia e, em casos severos de longa duração, também a uma dilatação do coração. Vários tipos de afecção cardíacas resultam seja diretamente da expansão crônica, seja indiretamente de uma síndrome de angústia. A enfisema pulmonar é um resultado imediato da expansão crônica do tórax. É de presumir que devamos prestar nossa atenção a tudo isto para descobrir a propensão à pneumonia e à tuberculose.
(Reich, Wilhelm. Analisis del Caracter. Buenos Aires: Editorial Paidós, Biblioteca del Hombre Contemporáneo, 1965, p. 379, § 2 e 3. Os trechos citados estão na terceira parte do livro, “Del Psicoanalisisa la Biofisica Orgônica”, escrita originalmente em fevereiro de 1935.)
E mais adiante:
A couraça da pélvis compreende na maioria dos casos praticamente todos os músculos pélvicos. Aquela se retrai e se projeta para fora, no ombro. O músculo abdominal situado em cima da sínfisis é muito sensível, como o são os adutores da coxa, tanto o superficial como o profundo. O esfíncter anal se contrai e o ânus se retrai para cima. Os músculos glúteos doem. A pélvis está “morta” e carece de expressão. Esta falta de expressão é a expressão emocional da sexualidade. No sentido emocional, não há percepção de sensações ou de exaltações; os sintomas patológicos, por outro lado, são muito numerosos.
Há constipação, lumbago, vários tipos de problemas (inflamações?) (acrecencias) no reto, inflamação dos ovários, pólipos no útero, tumores benignos e malignos, irritabilidade da bexiga, anestesia vaginal, anestesia da superfície do pênis com irritação da uretra. Existe com freqüência leucorréia com desenvolvimento de protozoários no epitélio vaginal (Trichomonas vaginalis). No homem, a anorgonia da pélvis dá como resultado a impotência eretiva ou a ejaculação precoce; na mulher encontramos completa anestesia vaginal ou espasmo dos músculos vaginais (vaginismo). (Ibid, p. 390, § 3 e 4)
Aos mais velhos não é necessário dizer que realmente acreditávamos nisso. Havia um clima histórico em que tais concepções faziam sentido; o “boom” reichiano coincidiu com os momentos de revolta da juventude nos anos 60. É desse período também a ampla divulgação das “causas” da esquizofrenia formuladas por David Cooper, como veremos a seguir:
Foi notado que o paciente rotulado de esquizofrênico é repetidamente confrontado por exigências contraditórias em sua família e, às vezes, na enfermaria psiquiátrica. Isto foi denominado de “duplo vínculo” por alguns profissionais americanos. Abordarei esta noção no seu contexto teórico, no próximo capítulo, mas posso exemplificá-la aqui com o caso simples, em que a mãe faz uma afirmação que contradiz por gestos: ela diz ao filho: “Vá embora, procure seus próprios amigos e não seja tão dependente de mim”, mas. ao mesmo tempo, indica não-verbalmente que ficará muito transtornada se ele a deixar, mesmo desta maneira limitada. Ou, enquanto manifesta ansiedade a respeito de qualquer proximidade física ela diz: “Venha cá e beije sua mãe, querido!” A menos que seu filho seja capaz de descobrir, em si mesmo, uma contraviolência impiedosa, com a qual consiga demolir todo o absurdo intercâmbio, sua resposta só pode ser a perplexidade e, por fim, aquilo que é chamado de confusão psicótica, desordem de pensamento, catatonia, etc. (Cooper, David. Psiquiatria e antipsiquiatria. São Paulo: Editora Perspectiva, Coleção Debates, 1973 (A edição original inglesa é de 1967), pág 41.)
E mais adiante:
Um novo desenvolvimento decisivo no entendimento da interação familiar foi trazido, em 1956, por Gregory Bateson, Don Jackson, J. Haley e J. H. Weakland, trabalhando em Palo Alto, Califórnia, no seu ensaio Toward a Theory of Schizophrenia (Contribuição a uma Teoria da Esquizofrenia). Neste ensaio, elaboraram a idéia de “duplo vínculo”, nas famílias de esquizofrênicos, como um fator que contribui para a gênese da esquizofrenia num membro eleito. Weakland (1960) resumiu o que é significado por duplo vínculo:
As características gerais desta situação (duplo vínculo) são as seguintes:
1. Quando o indivíduo está envolvido num relacionamento intenso, isto é, um relacionamento em que sente ser vitalmente importante que discrimine exatamente que espécie de mensagem está sendo comunicada, de modo que possa responder com adequação.
2. E o indivíduo é colocado numa situação em que a outra pessoa no relacionamento expressa duas ordens de mensagem, sendo que uma nega a outra.
3. E o indivíduo é incapaz de comentar as mensagens que estão sendo expressas, a fim de corrigir sua discriminação de qual ordem de mensagem deve ser respondida, isto é, ele é incapaz de fazer uma declaração metacomunicativa”.
Tão impossível é o dilema do esquizofrênico ou do futuro esquizofrênico, quando se defronta com esta manobra de um ou de ambos os progenitores, que a única resposta de que é capaz vem a ser aquela convencionalmente considerada como psicótica. (Ibid, p. 42)
Saindo do assunto da psicoterapia, mas tangenciando o tema, vamos a Koch e ao seu Teste da Árvore. O afã da mensuração em Psicologia aparece aqui em sua forma mais evidente:
EXCRESCÊNCIAS E CONCAVIDADES NO TRONCO
As excrescências no tronco, tais como também se observam na natureza, indicam segundo nossas observações, sobretudo traumas causados por enfermidades graves ou acidentes ou ainda dificuldades vividas intensamente. Porém não é de todo necessário que tal característica se apresente. A gravidade objetiva de um sofrimento não é decisiva com respeito a nitidez do sinal, mas sim à vivência subjetiva. (..) Concavidades (corte semicircular), são muito raras e indicam geralmente uma carência: sentimentos de inferioridade ou culpa.
As primeiras excrescências, entre os oito e nove anos (tratando-se de débeis mentais, entre dez e onze), só podem aparecer após as formas esquemáticas acentuadas terem sido vencidas. Ao mesmo tempo as vivências podem consolidar-se melhor. Fazendo abstração do surpreendente aumento nos desenhos de meninos de doze anos, a porcentagem é reduzida, com algumas flutuações e não cresce tampouco nos adultos.
Segundo investigações de Städeli as excrescências no tronco indicam de maneira evidente traumas vencidos, positivamente elaborados e não fatores neuróticos ainda existentes.
(Koch, Karl. Teste da Árvore. São Paulo: Editora Nobel, 1987)
Uma primeira observação: espero que ninguém acredite mais nesses mitos.
A segunda observação: aquilo que, na psicoterapia, soava como uma herança da noção de espiritualidade de Foucault, quase não aparece nestas abordagens da questão. As questões doutrinárias mostram-se tributárias da técnica, reificando conceitos, estabelecendo causalidades estritas, mensurando os fenômenos psíquicos de maneira tosca e metafórica, quando se apóiam, por exemplo, no conceito de energia.
Terceira observação: Pergunto se, depois de tudo isso, não estaremos hoje concebendo estruturas de explicação que serão caducas dentro em breve. Talvez alguma consciência disso já nos assalte, pois há muitos anos não vejo a emergência de novas “Teorias da Personalidade”.
Depois de examinar as estruturas explicativas acima – exemplos esparsos entre muitos outros possíveis – pergunta-se ainda: existe “progresso” em psicoterapia? As formulações de agora representam algum “progresso” em relação às anteriores? Pode-se afirmar que somos mais competentes (ou melhores, em algum sentido) que os primeiros terapeutas? Não tenho dúvidas que a resposta a esta última pergunta é negativa – supondo-se que a indagação faça sentido.
Penso que a psicoterapia se atualiza de outro modo – procurando a linguagem que melhor descreva a subjetividade de cada época e com ela possa dialogar. Para os nossos tempos proponho a fenomenologia como a melhor possibilidade descritiva.
*5 – A opção fenomenológica:
Por que dizer que exercemos Psicoterapia Fenomenológica?
1 – Por tentar apreender o fenômeno — no caso, o comportamento do outro — sem reduzi-lo a conceitos previamente estabelecidos, sem o objetivo de “encaixá-lo” em conceitos previamente dados. O escopo da observação é descritivo, mas não classificatório. Usando uma metáfora marxista, diríamos que a fenomenologia tenta resgatar o valor de uso daquilo que é observado, pondo de lado seu valor de troca, pois não reduz imediatamente o que vê a algo que está “por trás” ou “no fundo” da evidência. O fenômeno estará livre para manifestar-se em toda a sua potencialidade.
2 – Por não tentar, ao menos de imediato, “ir às causas” daquele comportamento. A Fenomenologia desenha-se a partir de uma tarefa descritiva, elaborando-se (deixando que se mostre) sobre esta base um plexo de referências que dê algum sentido ao conjunto das descrições possíveis. Este plexo será sempre gratuito, não se pretendendo jamais uma “verdade” absoluta.
3 – Por suportar longamente a falta de conclusões, o “fechamento” da interpretação. Isto é bem ilustrado numa passagem de Binswanger:
“Nas duas últimas décadas, o conceito de fenomenologia mudou em alguns aspectos. Hoje, precisamos diferenciar estritamente (?) entre a fenomenologia pura ou eidética de Husserl com uma disciplina transcendental, e a interpretação fenomenológica das formas de existência humana com disciplina empírica. Mas entender a última não é possível sem o conhecimento da primeira.
Neste rumo podemos ser guiados, para mencionar apenas um fator, por abster-nos do que Flaubert chamou de la rage de vouloir conclure, ou seja, por superar nossa necessidade premente de tirar conclusões, de formar uma opinião ou emitir julgamentos – uma tarefa que, à luz do treino natural-científico unilateral do nosso intelecto, não pode ser considerada fácil.” (Binswanger, Ludwig, “The Esistencial Analysis of Thought”. In: May, R., Angel, E. e Ellenbreger, H. Existence: A New Dimension in Psychiatry and Psychology. New York: A Touchstone Book, Published by Simon and Schuster, 1958`, p. 192.)
Em primeiro lugar, vemos que esta citação propõe um novo modo de recebermos o mundo que vem a nós, uma nova atitude perante o real. Voltarei a isto quando tratar da formação do psicoterapeuta fenomenológico.
Uma pergunta se impõe: Existem diferenças entre a atenção flutuante e a escuta fenomenológica? Boss, que foi paciente de Freud, dizia que o Mestre era psicanalista na teoria, mas um fenomenólogo na clínica. A atenção flutuante espera flagrar naquele que faz sua associação livre algo que remeta o discurso a constructo previamente dados; ao menos assim parece naquilo que se chama de “psicodinâmica”, as psicoterapias de “base psicanalítica”. A escuta fenomenológica não remete a nada, em princípio; tenta apreender, no discurso do paciente, unidades de significado que lhe dêem um sentido. Ela se detém ali onde o paciente pigarra, vacila, mareja os olhos, embarga a voz, ri sem motivo óbvio, conta um fato inusitado; o fazer terapêutico será sempre a intervenção sobre a semiologia de um discurso emocionado.
Mas então, qual o papel da teoria?
*6 –Teoria
É necessário, aqui, esclarecer um modo de a fenomenologia existencial encarar nossa forma de ser-no-mundo. Ora estamos em plena ação, e o movimento não é tematizado. Pensemos no surfista; se ele pensar (tematizar) na posição de seu corpo, pensar que o seu pé deveria estar em outro ângulo na prancha… já caiu. No entanto, quando ele está distanciado da onda, vendo um vídeo sobre surf, pode tecer essas considerações sem nenhum perigo; deve, mesmo, fazê-las, pois é esta a hora de tais considerações. Há, portanto, um modo em que estamos envolvidos com as coisas, e outro em que estamos delas distanciados. Cada uma dessas modalidades de ser-no-mundo tem seu papel e entre elas nossa vida se alterna. O psicoterapeuta, em pleno diálogo com seu paciente, não fica tematizando o tempo todo o comportamento do outro, remetendo-o à teoria; eu diria que esse é, mesmo, o modo menos freqüente em que se dá a psicoterapia. Mas há o momento do impasse, possivelmente de uma incompreensão, ou da necessidade de ampliar entendimento do que está acontecendo. É aqui que o terapeuta toma distância, finca pé na teoria, para retornar renovado ao diálogo vivo.
Estamos em plena idéia da morada, aquele lugar para onde nos refugiamos quando o mundo nos é hostil, o porto seguro de onde podemos tematizar a realidade para depois voltarmos a nos engalfinhar com ela.
O habitar sereno e confiado é a condição do gozar, do fruir, ou seja da experiência do corpo como fonte de prazer – mesmo que limitado – livre dos riscos e das incertezas.
O homem é arremessado num mundo que ele não escolheu e é aí como a abertura ao que deste mundo lhe vem ao encontro, ou seja, ele existe no sentido preciso de ser fora de si mesmo, de ser o seu fora. Ora sustentar-se neste existir, e só assim se existe, exige um espaço de separação, de recolhimento, de proteção que não encerre o existente numa clausura, mas lhe ofereça uma abertura limitada em que se reduzam os riscos dos maus encontros.
(Figueiredo, Luis C: “Foucault e Heidegger: A ética e as formas históricas do habitar (e do não habitar)” Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 136-149, outubro de 1995)
Fiel à sua orientação psicanalítica, embora grande leitor de Heidegger, Figueiredo ressalta que estudos psicanalíticos “nos revelam como o desenvolvimento psíquico de cada um de nós exige que, nos inícios da vida, a criança seja acolhida e tenha a oportunidade de uma inserção pré-objetalizada e pré-representativa no mundo”. Em seguida, ressalta algo que é pertinente ao nosso tema:
Há sempre ocasiões em que partes do ambiente social e físico nos oferecem – gratuitamente – um certo resgate dessa relação primária com o entorno. Em contrapartida, a ausência precoce destas experiências, que dão ao indivíduo a “quietude do centro” (Margaret Little), deixa marcas profundas no processo de desenvolvimento, embora, naturalmente, seja o destino de todos nós o enfrentamento de situações de maior diferenciação, isolamento, responsabilidade e risco. (idem, ibidem)
A teoria/morada fornece habitação (e habituação…) ao pensamento. Fenomenologicamente, no entanto, diríamos que o desejável para a psicoterapia seria uma “teoria mínima”, conceitos básicos que permitissem a maior abertura possível ao discurso do paciente. A profissão de psicolterapeuta implica em isolamento, responsabilidade e risco… Além disso, há de se ter presente que qualquer formulação teórica é gratuita, é a-letheia, não uma verdade entendida como representação, como conceitos que corresponderiam aos fatos. Os fenomenólogos, em geral, sentem-se à vontade naquilo que, genericamente, chamamos de Existencialismo.
*7 – Existencialismo.
Por que dizer que exercemos Psicoterapia Fenomenológico-Existencial?
Por estabelecer, como ponto de partida, que a essência humana é a sua existência. Isto significa que o Homem não possui, de antemão, nenhuma natureza pré-definida; aquilo que ele postula como seu fundamento último depende das condições históricas a que está sujeito e da interpretação que faz delas. É importante salientar que o Homem é o único ente a quem importa seu existir, o único que pleiteia o acesso ao seu ser, o único que postula algo sobre a natureza desse existir. Podemos dizer, de maneira informal, que o homem tem uma compulsão de postular uma natureza humana.
A “essência” deste ente está em ter de ser. A qüididade (essentia) deste ente, na medida em que se possa falar dela, há de ser concebida a partir de ser (existência). Neste propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar o ser deste ente, esta não tem nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que ser simplesmente dado, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter da presença. (…) A “essência” da pre-sença está em sua existência.
(Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes, , 1988, p. 77)
Esse existir humano, por não se fechar em algo já dado, estando sempre a fazer-se em cada instante, é uma abertura constante para o mundo, um commercium com os entes e os outros homens que vêm ao encontro de cada um de nós. A psicoterapia se faz tendo em vista essa condição primordial.
(…) nos encontros o psicoterapeuta deve auxiliar o paciente a desvelar suas próprias possibilidades e fortalecê-lo com o resguardo que lhe dê a suficiente segurança, confiança e coragem para assumir o risco e as incertezas inerentes à sua condição de ser-aberto. Nisto consiste o viver e é para isso que a psicoterapia deve apontar.
(Cytrynovicz, David, Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, nº 4, pág 38)
Notamos nesta citação a retomadas dos conceitos de espanto e a-letheia, pois esse ente que é o homem está sempre confrontado com suas possibilidade de ser e de autoconceber-se.
E como se forma o terapeuta que adota uma atitude fenomenológica e caminha em direção ao existencialismo?
*9 – Cuidado de si
Começo por uma citação de Foucault, repetindo algumas linhas que já foram vistas:
Meu objetivo, depois de vinte e cinco anos, é esboçar uma história das diferentes maneiras nas quais os homens, em nossa cultura, elaboram um saber sobre eles mesmos: a economia, a biologia, a psiquiatria, a medicina e a criminologia. O essencial não é tomar esse saber e nele acreditar piamente, mas analisar essas pretensas ciências como outros tantos “jogos de verdade”, que são colocadas como técnicas específicas dos quais os homens se utilizam para compreenderem aquilo que são.
No contexto dessa reflexão, trata-se de ver que essas técnicas se dividem em quatro grandes grupos, onde cada qual representa uma matriz da razão prática: 1) as técnicas de produção graças as quais podemos produzir, transformar e manipular objetos; 2) as técnicas de sistemas de signos, que permitem a utilização de signos, de sentidos, de símbolos ou de significação; 3) as técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, submetendo-os a certos fins ou à dominação, objetivando o sujeito; 4) as técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser; de transformarem-se a fim de atender um certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade. (grifos nossos)
in: Hutton (P.H.), Gutman (H.) e Martin (L.H.), ed. Technologies of the Self. A Seminar with Michel Foucault. Anherst: The University of Massachusetts Press, 1988, pp. 16-49. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écris. Paris: Gallimard, 1994, pp. 783-813.
Há pessoas – muitas – que se reconhecem nos variados espelhos que as tantas “linhas” psicoterapêuticas oferecem. Muitos alunos, quando iniciam seus estudos de fenomenologia existencial, dizem que sentem falta de conceitos sólidos e seguros para fincar a âncora. Percebem as bases existenciais com um “nada”. De fato é assim, mas digamos que não é um Nada niilista, mas um nada que é um manancial de possibilidades – as possibilidades humanas, não cercadas por conceitos previamente estipulados por malabarismos teóricos. É difícil encarar a gratuidade de nossas concepções sobre a natureza humana, os tais “jogos de verdade” que os homens criam para compreenderem sua suposta natureza.
Como o fenomenólogo cuida de si? Podemos dizer que há treino, sugerido pelos textos de Binswanger (já citado) e Boss, discípulo de Heidegger? (Isto não é exato; a palavra “treino” está por minha conta.)
Quando Boss faz indicações para a aplicação da fenomenologia heideggeriana no campo da psicoterapia e da psicopatologia, tendo em vista a compreensão do existir de uma pessoa específica segundo as dimensões existenciais, ele assinala que, além do estudo teórico das idéias heideggerianas, é necessário que o “investigador’ faça uma experiência de compreensão do seu próprio existir e do existir dos outros como Dasein. Desse modo, considera que é necessário exercitar a compreensão do existir humano como Dasein, e não apenas e estudo da ontologia heideggeriana, para que o “pesquisador” desenvolva um “olhar” ou uma “compreensão” dos fenômenos humanos. (Cardinalli, Ida. Daseinsanlyse e esquizofrenia: um estudo na obra de Medard Boss, São Paulo, EDUC/FAPESP, p. 84; grifos nossos)
Para esse treino, se assim o podemos chamar, o “pentapé” continua vigente: análise pessoal, estudo da doutrina, supervisão, grupos de estudos e exame de pesquisas.
Nos grupos de estudos e supervisões aprende-se, a muito custo, um descondicionamento das premissas da técnica. Aprende-se a privilegiar a descrição, o ouvir atento, para que dela surjam as possibilidades de sentido; aprende-se a colocar entre parêntesis os conceitos prévios, na medida do possível, fazendo-se desta atitude ao menos um horizonte; aprende-se a resistir ao ímpeto de ir imediatamente às causas da vida relatada, respeitando-se as formulações do paciente. É dele a descrição privilegiada de sua vida.
Que melhor medida da realidade dispomos nos assuntos humanos do que os termos que, submetidos a reflexão crítica e depois da correção de erros que pudermos detectar, oferecerem o melhor sentido de nossa vida?
(TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: A construção da identidade moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1997, p. 82)
Neste ponto podemos voltar brevemente aos modos de ser envolvido e distanciado, como exposta acima. A finalidade da abordagem fenomenológico-existencial é resgatar a experiência vivida, estar tão próximo quanto possível da vida do paciente. Vamos a um contra-exemplo. As descrições que hoje vemos na mídia, por exemplo, enfatizam questões neuropsicológicas; digamos que o assunto “está na moda”. Ora, como elemento de aproximação à vida vivida, a neurologia nada nos diz. Ao enamorado, no momento em que vai beijar a namorada, não importa que área de seu cérebro está sendo ativada, assim como não importa se a moça é uma projeção de sua mãe ou de sua Anima. Ao terapeuta fenomenológico-existencial importa, se for o caso, resgatar essa experiência da maneira mais próxima à que foi vivida. É possível que uma linguagem poética faça aqui mais sentido, e se for assim a ela devemos nos render; seus termos serão sempre inesperados, e ela será sempre descritiva, jamais causal. Se, num dado momento, o enamorado associar seu sentimento a alguma outra situação, e no momento tal percepção soar importante e verdadeira, com certeza isto será trabalhado, pois surgiu a partir de sua própria fala. Ao terapeuta cabe fornecer o acolhimento necessário para que estas experiências – a-letheia! – possam acontecer.
Defendo a posição de que a Fenomenologia Existencial é a abordagem mais adequada aos nossos tempos.
*9 – Psicoterapia e Pós-modernidade ou Capitalismo Tardio
Simplificando-se ao extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências; mas este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde seus atores, os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo (…)
Assim nasce uma sociedade que se baseia menos numa antropologia newtoniana (como o estruturalismo ou a teoria dos sistemas) e mais numa pragmática das partículas de linguagem. (Lyotard, Jean F., O Pós-Moderno. Rio de Janeiro, José Olympo Editora, 4ª Ed., 1993, p. xvi.
A descrença nos metarrelatos nos faz em pensar, em Psicologia, nos tantos sistemas “acabados”, com limites definidos, que pretendem descrever a Natureza Humana. Os fenomenólogos recusam-se a entrar nesse esquema, e assim ficam mais perto das questões pós-modernas.
Deve ser possível, para alguns, adotar uma linha teórica sabendo, a cada vez, que está num dos “jogos de verdade” foucaultianos, consciente da gratuidade e contingências dos conceitos que os sustentam. Mas é bem difícil que isso aconteça. Em geral, depois de simpatizar (a-letheia, de novo) com uma linha, esta toma o cunho de verdade (veritas). Os conceitos são reificados, o psicoterapeuta assume a estrutura da teoria como reflexo do real (representação) e passa a defendê-la, como se fosse uma questão axiológica ou ideológica.
Numa época em que as grandes ideologias deram lugar às lutas setoriais – lutas das diversas etnias, das multiplicidades sexuais, das tantas formas de espiritualidade – necessitamos de uma psicoterapia sem conceitos prévios e aberta ao diverso.
De minha parte, recuso-me a defender idéias e valores – pois o eixo axiológico está sempre presente – concebidos entre meados do século XIX e os anos 70 do século XX. Penso que a opção fundamental esteja na escolha entre ser guardião desses valores ou estar afinado com a diversidade de meu tempo. Escolho a segunda hipótese, com os pés apoiados na fenomenologia e no existencialismo. Por enquanto, talvez.
Santos, 25 de abril de 2009.
[1] Apud Critelli (1996, p.77), cf. citação anterior, no item 3.2.
[2] O conceito de circunvisão é mais complexo do que a aproximação aqui traçada. Para nossa finalidade, fiquemos com esta definição, ainda que parcial.