Nunca estamos sós

Luiz A G Cancello

Leio que um reino africano, ao contar seus habitantes, leva em conta os antepassados dos cidadãos atuais e seus futuros descendentes. A informação é breve, não sei como eles fazem isso, se há um número suposto ou se é um conceito subjetivo, mas me leva a pensar nas noções de legado e gratidão.
Um dos exercícios mentais que gosto de fazer é olhar para um objeto – digamos, um simples vaso com flores – e avaliar quantas pessoas foram necessárias para que essa presença fosse possível. Sem fazer um inventário completo, é possível pensar no oleiro, no sujeito que transportou o vaso, da fábrica até a loja… esqueci de quem cavou o barro e encheu o caminhão, e do motorista do caminhão – o vendedor, o motoboy que entregou o vaso em minha casa, além de todos os implicados na fabricação e manutenção desses veículos. A flor foi cultivada em algum lugar, transportada por alguém até a floricultura, cuidada por um empregado da floricultura, plantada no vaso, e assim vamos ao infinito. Imagine se eu resolver pensar desse modo sobre o computador em que escrevo, com peças oriundas de diversas partes do mundo. Serão centenas de seres humanos envolvidos.
Cada um de nós recebeu as influências dos pais ou de quem cuidou de nós, dos meios de comunicação que envolvem milhares de atores, dos amigos de infância e de adolescência, professores, de inumeráveis mulheres e homens próximos e distantes, conhecidos e desconhecidos.
Somos também, em maior ou menor grau, parte daqueles que influenciarão os outros, que deixarão sua marca material ou imaterial em numerosos habitantes do planeta. Não é preciso ser famoso ou gênio, influencer ou Prêmio Nobel. O barbeiro influenciou a estética e a autoestima de muitos, o operário assentou os tijolos das construções onde tantas pessoas hão de morar, o motorista contribuiu para tornar realidade viagens tão necessárias ou desejadas, o andarilho da estrada fez você se indagar: “Para onde vai esse sujeito?”.
Cada um de nossos passos neste planeta implica gerações de antepassados e companheiros atuais de caminhada, que conduziram até aqui a aventura humana. Cada desejo faz menção ao futuro, em muitos casos a seres que ainda não nasceram. Se desejo um país melhor, penso a longo prazo, um lugar em que filhos e netos, sobrinhos, amigos e toda a gente nascida e por nascer possa desfrutar uma vida mais plena. Essa ampliação espaço-temporal da existência me lembra aquele reino africano e a abrangência de sua cosmovisão.
O indivíduo, a rigor, não existe. Só pode se dizer “individualista” quem está cego à amplidão da existência. Nada e ninguém pode ser esquecido, na jornada de cada um e de todos. Isso me faz retomar a definição brilhante que ouvi numa conferência de José Miguel Wisnik: “Sagrado é tudo aquilo que não pode ser descartado.” Estamos, aqui e sempre, na vizinhança desse território.
Creio que o significado do termo gratidão se ilumina nas veredas que estamos percorrendo. Não precisamos de entidades superiores (nada tenho contra elas) para atingir uma dimensão que expande a compreensão do existir. A transcendência está muito próxima, no vaso de flores, no computador, na vacina que vai nos salvar, nas lembranças dos que nos deixaram, no milagre de tudo se coadunar e fazer sentido, no simples fato de ser possível nos encontrarmos ao ler este texto. Eu me sinto grato por fazer parte disso e sei que não estou só. Gratidão – ao que é gratuito, apesar de finito, e traz a graça da vida.

Publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 18 de fevereiro de 2021