Luiz A G Cancello
Chega em casa em ritmo lento. Pega a chave devagar, abre a porta com calma aparente, entra. Vai até o quarto, para na porta. Quer contar para a mulher a humilhação sofrida. Naquele dia 23 de dezembro pararam seu carro num comando de trânsito. O policial foi muito rude, nada fora da lei ou do esperado, mas a voz autoritária mexeu com seus brios. Teve de engolir a imensa vontade de retrucar qualquer coisa, nem que fosse um pedido educado para o outro baixar o tom. O medo das consequências foi maior, calou-se. Ela saberia ouvi-lo? Às vezes tem medo da reação da companheira. Sente a garganta seca e as mãos trêmulas.
Vai tirando a roupa em silêncio. Deve acordá-la? Ela ressona. O cachorro, aos pés da cama, também emite um som grave, ele escuta o ar sair das narinas do bicho. Algo ali o faz sorrir, não atina bem o motivo. Vai ao banheiro, urina e hesita em dar a descarga. Tenta controlar o fluxo de água na privada, apertando com leveza o botão. Consegue, congratula-se.
No corredor antecipa a cena de acordá-la. Ela se assusta, grita, o cachorro late, um pandemônio. A confusão macularia o espírito natalino. Contar o episódio de humilhação, em tais circunstâncias, não faria o menor sentido. E se ela estiver desperta, só fingindo dormir? Não é o seu estilo, mas as pessoas são surpreendentes. Nunca vai ter certeza, conforma-se.
Volta ao quarto. Escuta o murmurar dos sonos e percebe um desencontro nas cadências. O animal tem o período respiratório mais longo, ela é mais rápida. Às vezes quase coincidem, os ritmos, para logo se separar. Fica um bom tempo ouvindo a curiosa sinfonia, sente um grande bem-estar em contemplar os dois seres. Gosta deles. Sua respiração ora segue um padrão, ora outro. Agora entende o sorriso. Com muito cuidado se apossa de seu lugar sob o lençol, ainda no embalo dos sons da noite. O sono o pega desprevenido.
No outro dia sente-se bem. A garganta não o incomoda, as mãos estão firmes. Beija a mulher, deseja Feliz Natal, chama o cachorro e agrada sua cabeça. Arma-se para contar a humilhação de ontem, mas não tem clima. Fica para outra vez. Ela está fazendo o café, ele senta e deixa o cheiro saído do coador penetrar as narinas e o cérebro. Fecha os olhos para apreciar melhor o aroma, inaugurando o dia. Em breve o odor nauseante do peru assado vai tomar conta do ambiente. Lembra-se dos ressonares, na verdade os sons se encontrando e desencontrando não saíram de sua cabeça. Fica ali muito tempo, entre o cheiro e o embalo, sem vontade de voltar para a mesa. O policial aparece, vestido de Papai Noel, dá uma risada exagerada e brincalhona, está amigável, é engraçado. Felisberto ri do esforço que o agente da lei faz para carregar o saco de brinquedos e aos poucos acerca-se da faca. Com gestos lentos, mas certeiros, crava a lâmina no peito do outro. Um líquido vermelho jorra, ele continua rindo, rindo e esfaqueando, é muito divertido. Estende os braços para brincar com os presentes rolando pelo chão, mas é tomado por um enorme cansaço. Percebe vagamente uma voz ao longe, seguida de um latido.
Na cozinha, a mulher aproveita o fluir do sangue para tingir a toalha, afinal é a cor desta data. Melissa sempre foi muito prática. Alguns pingos caem no piso. O cão abana o rabo e se encarrega de lambê-los, feliz.