Mulheres Empilhadas, de Patrícia Melo

Apreciação chocada de Luiz A G Cancello

Uma personagem sem nome narra em primeira pessoa. É uma advogada moça, bonita, empregada num escritório de advocacia. Depois de um desentendimento sério com o namorado, quando a violência se avizinha, por injunções da vida profissional ela vai ao Acre para acompanhar uma série de julgamentos de assassinos de mulheres, para compreender o fenômeno. A partir daí, sua trajetória pessoal vai se entrelaçar com as circunstâncias, numa história eletrizante.
A moça é uma “estrangeira” em Cruzeiro do Sul, a cidade para onde é enviada. Ali sofrerá choques culturais em relação ao poder, à religião, ao modo de se comportar. Será amiga de Carla, uma promotora que está no Acre há 4 anos, ainda a meio termo entre a cultura do Sul e a do Norte.
Do Acre a autora mira o Brasil. Abrindo alguns capítulos há um breve resumo de feminicídios reais, perpetrados em todos os lugares do país, com os nomes dos assassinos e os motivos torpes que os impeliram ao ato.
Nos confins do Brasil ela vai encontrar uma justaposição de famílias poderosas, violência, impunidade, misticismo, nada que não encontrasse em São Paulo, mas numa configuração completamente diversa.
Mergulhando nos rituais indígenas das ervas alucinatórias, a advogada recupera a memória de fatos passados em sua vida, também ligados à violência. Ao participar de juris com sentenças parciais e absurdas, conversas com os envolvidos e leituras sobre o tema, vai se inteirando do horror e das absurdas circunstâncias do feminicídio. É muito difícil e ambíguo compreender o horror em sua totalidade. Embora não se detenha nas origens profundas da matéria, há considerações psicológicas interessantes:
“A cena clássica que vemos no cinema do advogado que briga com seu cliente pego numa mentira é sempre mais complexa na vida real. O assassino, antes de mentir para o delegado, para família, para o advogado, para o padre, para o jurado, para a sociedade, mente para si próprio. A despeito do seu crime, ele tem que acreditar que ainda é um ser humano.”
O enredo costura a história pessoal da advogada, as descrições chocantes de assassinatos de mulheres, os rituais de um povo que sofre a invasão dos madeireiros e do agronegócio, a violência que impera no estado, a corrupção do sistema judiciário do Acre. A moça, órfã, tem uma relação estreita com a avó. Os telefonemas que trocam enfatizam o choque cultural entre as regiões do país.
A autora foi muito bem sucedida na sua tarefa de mostrar o absurdo da condição feminina frente à violência dos homens, entremeando uma história pessoal, os contrastes do Brasil e suas instituições corrompidas. Há livros que servem com aula, e este texto de mostrou muitas faces do feminicídio que um tratado de sociologia talvez não evidenciasse com tanto vigor.
Escolhi enfatizar o “estrangeirismo” da protagonista nesta apreciação, pois creio que é uma chave interessante para apreciar o livro. A visão antropológica sempre nos traz muita riqueza para compreender o comportamento humano individual e social.