Luiz A G Cancello
Tenho o hábito de jogar as moedas que recebo de troco numa caixa. Depois de algum tempo conto o que tem ali e vou ao mercado. As meninas do caixa ficam exultantes, elas precisam de dinheiro miúdo.
Ocupei-me da caixa num dia em que íamos viajar. Eu, como sempre, estava pronto, malas feitas, mas ela ainda tinha coisas a fazer. Em geral aproveito esse tempo para ler. Nesse dia, no entanto, resolvi contar as moedas, espalhando-as na mesa da sala. Depois de tanto tempo juntos, sei calcular o quanto ela demoraria para tomar o banho, secar o cabelo e se vestir. Imaginei que sua mala já estaria pronta.
Peguei a caixa e vi que tinha muitas moedas. Não daria para contar tudo, mas daria para separá-las em valores, e colocar cada pilha num saco plástico. Comecei, atento aos ruídos de banheiro. Ouvi quando ela ligou o chuveiro. Fui fazendo as pilhas de 5, 10, 25 e 50 centavos. As de um real eu usava normalmente, não colocava na caixa.
Percebi que não estava tão ágil quanto esperava. Algumas moedas de 10 centavos têm cor de latão, outras são prateadas. E há dois tipos de moedas de 25 centavos. Há moedas de 50 centavos mais finas, outras mais grossa e pesadas. Escutei o chuveiro ser desligado, um hábito que ela tem no meio do banho, para lavar a cabeça. Calculei o quanto faltava para acabar minha tarefa, era bastante, teria de ser rápido, o chuveiro já estava funcionando novamente. Fiz daquilo um jogo, estava compenetrado, senti uma certa palpitação. Lembrei-me de uma figura de um livro de criança, um velho usurário contando seu dinheiro, mas não era o caso, ou era? Que estupidez, ficar com o coração acelerado por causa de uma coisa tão idiota, e daí, se não conseguisse separar as moedas? Eu estava levando aquilo demasiadamente a sério. Dalí a pouco escutaria o chuveiro ser desligado definitivamente e o secador de cabelos começar sua função. E eu ainda fazendo o que me propus, agora já parecendo uma questão de honra. Tentei ser menos visual, identificar as moedas pelo tato, como faria um pedinte cego. Logo vi que não tinha essa prática. Quando eu a ouvisse abrir a porta do banheiro e escutasse seus passos indo para o quarto se trocar, já teria de ter uns três quartos do trabalho concluído. Ela não demora para se vestir, talvez se pintasse, aí o tempo seria suficiente. Mas ela nem sempre se maquia para viajar de carro, sabia que já estávamos atrasados, talvez dispensasse a pintura.
A questão se tornava cada vez mais importante, precisava separar todas as moedas. Os sacos plásticos estavam na cozinha, teria de computar também o tempo de pegá-los. Não poderia falhar. A porta se abriu, ela cantarolava uma canção lenta do Caetano, a baianidade dolente fez um contraste estranho com minha afobação. Os montes de moedas estavam agora muito próximos, podiam se confundir e por tudo a perder. Separei-os com cuidado, deixando um espaço maior entre eles, e continuei a manusear o metal. Quanto dinheiro teria ali? Mas não era pra pensar nisso, não era o momento de me dispersar. Essa seria uma outra etapa, faria a contagem na volta da viagem. A julgar pelo silêncio, ela devia estar se penteando, pensei até que ouvia o pente passar por seus cabelos. A essa altura já estaria vestida. Estávamos quase acabando, cada qual a sua parte. Os tempos precisam coincidir. Se eu acabar antes, ficarei esperando, o que não me agrada. Se ela sair do quarto enquanto eu ainda estiver na lida, seria muito ruim, teria de responder a perguntas, “Por que você está fazendo isso agora?”, eu retrucaria de mau jeito, “Por que você sempre se atrasa”, e a confusão estaria armada. As mãos nas moedas, os ouvidos nos ruídos vindo do quarto, isso só é possível porque nosso apartamento é pequeno, essas coisas fora do contexto vão ocorrendo na mente, sai fora, é preciso foco.
Pensei em me levantar rapidamente da cadeira e ver se ela estava se pintando, mas me senti como quem quer roubar no jogo. De repente ouvi sua voz: “Meu bem, minha bolsa está aí na sala, você pode trazer pra mim?” Agora era ela que trapaceava. Quebrou as regras. Pensei em responder, malcriado, “Por que você não vem buscar?”, mas não queria provocar um clima tenso. Gostaria de acabar o trabalho antes de ela vir para a sala, deixar a caixa no lugar de sempre, queria ter a separação das moedas como um segredo, talvez eu contasse tudo amanhã ou muitos anos depois. Peguei rapidamente a bolsa, levei-a ao quarto e voltei para a sala. Ela percebeu minha pressa, olhou com estranheza, mas não fez perguntas. Curioso, essa discrição não faz parte de seu perfil. Saberia de alguma coisa? Cada vez mais tenso, já meio trêmulo, consegui acabar o que tinha me proposto, ir à cozinha, pegar os sacos plásticos, ensacar as moedas de diferentes valores, colocar tudo na caixa e deixá-la em cima do móvel, onde sempre esteve. Logo em seguida ela chegou na sala, discretamente pintada. Foi uma sincronia perfeita. Eu me sentia nervoso, meio exultante, meio idiota, tentando entender o sentido do que havia acontecido. “Você está estranho. Aconteceu alguma coisa?” “Nada, estou só ansioso para colocar as malas no carro e ir embora”.
Viajamos em silêncio, às vezes ela me olhava de lado, como quem quer adivinhar meus pensamentos, sem coragem de perguntar. Meu peito estourava, eu tinha um orgulho absurdo do meu segredo e uma vontade enorme de contar tudo. Meu desafio, agora, era manter a boca fechada. Foi num congestionamento que ela resolveu falar: “Você não vai dizer nada?” e respondi a coisa mais irritante possível, “O que você quer que eu diga?”.
Silêncio novamente, o trânsito estava emperrado, nos feriados as estradas forçam uma convivência intensa. Umas duas horas depois paramos num posto de gasolina. Saímos do carro, ela veio até mim com aquele jeito delicado que me desarma, abraçou minha cintura até obrigar-me a sentir seu cheiro e perguntou: “Você não vai me dizer nada, mesmo?” E eu, palerma, já derrotado, ainda querendo salvar um pouco da dignidade da missão, deixei passar alguns segundos e respondi: “Vou te contar uma coisa, mas não quero ouvir comentários. E por favor, não fala pra ninguém.”
Fiz um relato completo, sem omitir detalhes. Em momento algum olhei para ela, não queria ver qual dos sorrisos sua boca iria esboçar – pena, deboche, compreensão, surpresa, graça, amor. Senti apenas seu beijo em minha bochecha, e então entendi que o mundo tinha voltado à harmonia de sempre e as coisas estavam em seus devidos lugares.