Miojo

Luiz A G Cancello

A água já ferve. Aprecio o borbulhar, aproveito para respirar o vapor, é bom para as vias aéreas. Exagero, sinto as mucosas queimarem, os olhos lacrimejam. Minha mãe sempre me chamava de exagerado. Exagerado e ansioso. Gosto de macarrão instantâneo porque não preciso ficar esperando horas para a comida ficar pronta. É pá pumba.
Vou ao armário pegar o miojo. Não acho. Não é possível, sempre esteve aqui. Pouca gente entra nesta casa, só a arrumadeira. Ela não mexe nas coisas da cozinha, até onde sei. Minha irmã veio me visitar há uns três meses, mas depois disso já fiz miojo. Devo ter colocado a embalagem em outro lugar, logo eu, tão sistemático. Ou é a memória, na minha idade é esperado algum declínio dessa função. Vou consultar um neurologista quando estiver com paciência de ir ao médico. Minha mãe me achava meio hipocondríaco, talvez tivesse razão, mas não suporto as salas de espera. Agora, neste momento, preciso achar o miojo.
(O problema das pessoas muito organizadas é esse: quando perdem uma coisa, não sabem procurá-la em outros lugares possíveis, pois o único lugar possível é aquele onde a coisa não está. Há um momento de espanto, o espaço-tempo é suspenso, o olhar fixa um ponto fora do mundo. A falibilidade humana se mostra e sua face é aterrorizante. As possibilidades ficam em aberto, há de se escancarar todas as portas, olhar embaixo de tudo.)
Calminha, Flor de Laranja, com calma tudo se arranja, dizia a mãe. O sangue esfria, a água ferve, a realidade urge, é preciso abaixar o fogo. Com a chama mais fraca talvez eu possa respirar o vapor sem queimar as entranhas. Faço isso e sinto a fumaça branca penetrar até os pulmões. E o miojo, onde estará? Nessas horas minha mãe pedia calma, dizia para refazer os passos, em retrospectiva a gente encontra o que foi perdido. Tentei esse método cartesiano algumas vezes, sem sucesso. Apelar para São Longuinho era outro recurso materno, este no campo místico. Dispenso. Dar os três pulinhos é ridículo, mesmo sozinho.
Reviro a cozinha e não acho o miojo. Desligo a água para não gastar gás à toa. Penso em procurar no banheiro. Um miojo no armário da pia, escondido atrás do espelho onde faço a barba, seria humilhante. No quarto nem pensar, tal deslocamento seria uma sandice. No guarda-roupa, embaixo da cama? Desejo com força não encontrar o macarrão nesses lugares, a derrota seria monumental, destruidora. Nem começo o percurso. Achar objetos em cantos improváveis desestabiliza o universo. Inverte a entropia. Cada lugar com sua coisa, cada coisa em seu lugar, dizia a mãe. Bem que ela podia estar aqui para me fazer um miojo. Acharia o pacote em três tempos. A mãe, bem a conheço, não se renderia ao miojo. Compraria farinha, ovos e sal, faria a massa, cortaria os filetes e só depois jogaria tudo na água fervente. Com certeza providenciaria um molho de tomate caseiro. Respiro fundo, em vão, foi-se o tempo dos vapores quentes.
– Desculpe, mãezinha, já não tenho paciência para tanta espera.