Meus começos e meu fim, de Nirlando Beirão.

Apreciação de Luiz A G Cancello

Passei a apreciar o texto de Nirlando Beirão principalmente ao ler a revista Carta Capital. Durante algum tempo, além de escrever sobre política, assinou uma página que descrevia os sons dos muitos lugares por onde viajou. Podia ser a música local, um sotaque, um canto de trabalho. Passei a prestar atenção nesse jornalista mineiro e bom de escrita.

Nirlando faleceu em abril de 2020. Em julho de 2016 foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica. Resolveu então escrever um livro, seu último livro, em que revive uma história de família e faz considerações sobre a vida e a morte.
O drama familiar é descrito de início. Seu avô ordenou-se padre, em Portugal, e veio exercer o sacerdócio no Brasil em Oliveira, no interior de Minas. Lá apaixonou-se por uma paroquiana. O casal fugiu e constituiu família em outro estado, para depois retornar a Minas Gerais e estabelecer-se em Belo Horizonte, onde prosperaram como comerciantes. A transgressão do avô, embora conhecida por todos da família, era interdita. Nirlando se coloca a tarefa de reconstituir o enredo desse amor, por fragmentos de conversas, sussurros, informações camufladas e todos os pingos de informação que os mais velhos foram deixando aqui e ali. Ele consegue traçar uma história deliciosa, entremeadas por suas recordações e pela doença implacável.

Penso no meu avô português ao chegar ao Brasil, na segunda década do século 20. Ele trazia uma missão, mas duvido muito que trouxesse uma fantasia. Acabaria por encontrá-la, no inesperado flamejar do amor proibido.
O que a doença Fez de mais cruel comigo foi me impossibilitar de sonhar um sonho acordado. Também pudera: o meu corpo me exilou de mim mesmo.

Em geral, quando faço apreciações sobre livros, transcrevo apenas um parágrafo, para mostrar o estilo do autor. Aqui abro uma exceção. A habilidade de entremear sua vida com a saga do avô é tão bem construída que vale a pena ser ressaltada mais de uma vez.
Como tantos que se deparam com o fim próximo, Nirlando Beirão pergunta-se sobre o que deixou de fazer na vida, sem perder o humor nem o fio da narrativa:

O martírio canônico imposto pela deserção do amor divino em troca da paixão carnal desdobra-se em múltiplos itens, um dos quais, categórico, consiste, ou consistia, antes do papa Francisco, na excomunhão.
Vovô acatou, talvez resignado. O banimento se estendia até a terceira geração do prevaricador, o que me incluía, fato de que só me daria conta muito mais tarde. Já que o inferno estava assegurado, não seria o caso de eu ter explorado mais francamente os encantos do pecado?

As progressivas dificuldades em escrever, por causa da evolução da doença, dão um eixo para o livro. Nirlando consegue ser irônico sem se desrespeitar. Vai procurando o jeito de descrever as mudanças em seu estado físico e mental, as limitações concretas e o que fazer para conviver com elas sem se derrotar. Faz a procura junto com o leitor, deixando clara a luta constante com o texto, a delícia e a tortura das palavras que aparecem e daquelas que escapam. O avô é evocado a cada passo:

Palavras desenham a minha constelação particular – assim como na vida do meu avô bom de púlpito. São as minhas estrelas. Eu busco palavras, sonho com elas. É do oficio e às vezes elas me acordam, em obsessão insone, na tentativa inútil de se encadear em frases que, ali, parecem fazer sentido mas que esqueço tão logo abro os olhos de manhã, Fica sempre o sentimento de, na neblina do sono, ter perdido uma sentença genial.

Ler o livro de Nirlando Beirão é uma viagem entre nostálgica e divertida por Portugal e Minas Gerais. O sobrenome Beirão vem de Beira, uma das províncias em que se dividia o país. Originalmente o avô era da família Cabral, mas um antepassado resolveu adotar o toponímico. Há passagens engraçadas e curiosas sobre esse fato. Mas é Minas que se sobressai, presente nas pessoas da família, nas conversas, nos costumes tão bem caraterizados, nas comidas, nos cheiros. Nosso autor sai da terra natal para se livrar das garras familiares e ganhar o mundo. Muito mais tarde percebe a ligação com o lugar de origem.

O mineiro que não está em Minas, como eu, recolhido a São Paulo, é como o inglês do conto de Jorge Luis Borges, exilado num pardieiro portenho: padece de irrealidade. Nascemos com um senso de inconcretude, mesmo que tenhamos tido, no berço, a vizinhança bem real do pico do Itabirito ou, sei lá, da Avenida Afonso Pena. Por isso mesmo é difícil agarrar Minas Gerais pela mão. Minas, monumento à ambiguidade, escapava de mim quando eu queria me apegar, grudava em mim quando eu buscava fugir dela.

A linguagem de Nirlando está longe de ser econômica. Ele não poupa adjetivos, constrói frases longas, faz citações e deixa entrever seu grande arsenal de cultura. Nem por isso a escrita é esnobe. Um tanto barroca, às vezes, afinal é das Geraes, mas sempre mantendo a elegância e o bom gosto, apesar de estar lavrada num livro de adeus.