Luiz A. G. Cancello
Escrevi o texto abaixo no bloco de notas do computador, copiei tudo e colei no facebook. A missão estava cumprida.
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Afasto-me de um intróito cediço ao ano vindouro.
Com certeza escoimarei o texto para deixá-lo sem caganifâncias. Perscruto os significados, como sói proceder o bom estilo. Vacilo, mas sei que não sou ergófobo, recuso-me a necear.
Adrede esforço-me a produzir palavras de truz. Acoimaria aos quatro ventos minha inépcia, se assim não fosse.
Que nobres ideias pervadam meu imo, para parir as pulcras palavras que pretendo. Hão de ser claras, não ínvias, a apontar caminhos; não ominosas, mas solares.
Rendo-me, no entanto, à inópia vocabular. A fluência em mim não é ínsita, vejo agora, consternado.
Infrene, poderia ser um parlapatão, mas longe de mim tal desígnio. Limito-me.
Feliz Ano Novo, molecada!
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Pois é, começou tudo de novo. Começa – eu diria recomeça – a acontecer no começo de janeiro, depois do Dia de Reis.
É o seguinte. Leio de tudo, revistas, livros, jornais. Devoro, e o verbo cabe aqui, como verão a seguir. Às vezes me deparo com uma palavra estranha, desconhecida, arcaica. Tomo nota.
Esse “tomo nota” pode parecer que tiro do bolso um bloquinho e escrevo a tal palavra. Engano. Deixo-a registrada no bloco de notas do celular. Esse meio eletrônico parece profanar alguma coisa, traz um sentimento vago, desconfortável. Paciência.
Talvez esse anotar compulsivo seja um modo de retardar o Alzheimer, como palavras cruzadas, mas não tenho a menor paciência de fazer palavras cruzadas. Acho chatíssimo.
É o seguinte. Vou anotando cada termo estranho, desconhecido, arcaico, e – acrescento agora – esnobe ou chocante, capaz de impressionar um possível interlocutor. Imaginem usar “ínclito” numa conversa de botequim. Dizer assim no meio de uma frase trivial, como quem não quer nada. Maravilhoso. Deliciosamente narcísico. Mas não devo me deixar levar por tais leviandades, a me desviar do caminho correto.
Li estranhos relatos sobre algumas tribos de índios. Lembro-me também do primeiro filme intitulado “Mundo Cão”, onde os mesmos silvícolas aparecem. Durante o ano inteiro estocam alimentos. Em alguns períodos chegam a passar fome, mas não mexem na comida guardada. No final do período, nas festas orgiásticas, símbolo da destruição e recomeço do mundo, fazem um grande banquete, preparado com requinte. Comem e bebem até se fartar. Daí o ciclo recomeça.
Pois é, mais ou menos isso. Durante o ano estoco palavras. Deveria fazê-lo em uma plataforma mais solene, ou sagrada, quem sabe um pergaminho, mas aqui sou profano e utilizo o celular. Um tipo de antropofagia cultural, digamos? E vou acumulando vocábulos, de vez em quando dou uma lida em tudo, até a chegada de dezembro.
Nesse mês sou tomado por uma agitação interna. Meus familiares não percebem, dizem apenas que ando distraído, mas estou em completa ebulição. É preciso preparar o banquete. Em primeiro lugar, transfiro o arquivo do celular para o computador, como se pegasse a comida estocada e a levasse para a cozinha. Só então vou ao dicionário e anoto todos os significados. Entendam isso como o preparo das panelas, do molho, dos temperos. Chega então o dia, entre o Natal e o Ano Novo. Em transe, num estado de torpor, sento na frente da tela e começo a compor um texto com as palavras acumuladas. Apesar da estranheza dos vocábulos, a composição sai fluida. Tenho certeza que já estava lá, à minha espera. Como um prato ritual, já ditado pelos deuses, apenas copiados por humanos. Espalho os termos, jogo aqui e ali as estranhezas, e pronto. A harmonia se estabelece.
Outra tribo de índios. Um membro da comunidade sempre fica em cima da montanha sagrada, para ter a certeza do nascimento do Sol. O dia só começa de fato quando esse índio anuncia o fato auspicioso para a aldeia: O Sol apareceu no horizonte. Pois é. Nada a ver com revoluções e solstícios, coisa de astrônomos.
É o seguinte. O ano só começa, de fato, quando organizo as palavras acumuladas. Acabo o texto com a sensação do dever cumprido. O sol nasce, enfim. Vocês não sabem da minha imensa responsabilidade. Não peço agradecimentos ou homenagens. É apenas meu dever.
Estou muito cansado, mas vou me recuperando. Do final do ano até o Dia de Reis retomo o vigor habitual.
Depois tudo retorna, eternamente.