Luiz A G Cancello
“Custei a compreender que fantasia / É um troço que o cara tira no carnaval”, canta o genial Aldir Blanc numa de suas letras. De minha parte, custo a compreender que máscara é um troço que certas pessoas tiram na pandemia.
O processo civilizatório, até onde podemos compreendê-lo, vai na direção de superarmos as diferenças de nascença, seja de cor, orientação sexual, gênero, nacionalidade, ou mesmo talento e beleza. Nenhum desses atributos deve colocar uma pessoa em vantagem sobre a outra, quando se trata de ter uma vida digna. Esse caminho requer tolerância, empatia, respeito, esforço para compreender a diversidade – enfim, cuidado com o outro.
Presume-se que haja uma trajetória humana em que o darwinismo estrito, a sobrevivência do mais apto per se, aos poucos seja superada. Cuidamos daqueles que têm algum tipo de deficiência, para que tenham uma vida próxima à que têm os mais favorecidos pela sorte. Há mecanismos sociais, mesmo que insatisfatórios, para que a desigualdade não seja extrema. Quase todo mundo é a favor, em tese, da educação e da saúde universais. Aprendemos a ser solidários e ajudar a quem precisa. Disse uma antropóloga que o primeiro sinal de civilização foi um fêmur recuperado, sinal de que outro ser humano cuidou do doente.
Usar máscara é um jeito de proteger as outras pessoas, mais que a si mesmo – coisa que todo mundo sabe, ou deveria saber. Evita-se que as partículas expelidas por nosso corpo, com alguma probabilidade (mesmo que remota) de conter vírus, espalhem-se pelo ambiente. Além de sua função mecânica, sinaliza respeito ao semelhante e à comunidade. É cuidado, uma atitude civilizada, no sentido que estamos dando ao termo. Mesmo que o sujeito já tenha sido infectado, ele deve usar a máscara, pois ninguém é obrigado a saber da imunidade alheia, além de desconhecermos se ela realmente existe, e por quanto tempo. Ou pendure no pescoço uma tabuleta com os dizeres: “Já tive Covid!”. Seria ridículo, de eficácia duvidosa, mas ainda assim mais respeitoso. Alguns dizem que se sentem sufocados com um pano atrapalhando a respiração. Garanto que mais sufocados estão aqueles com um tubo enfiado na traqueia.
Percebo uma arrogância, às vezes até explícita, em quem não usa máscara. Um olhar meio gozador para quem está com nariz e boca protegidos. Coisa de maricas, como quer o equivocado presidente da nação? Há também quem apregoe: “Ninguém pode me obrigar a usar máscara!” Não cabe na cabeça desses sujeitos que os interesses pessoais devem submeter-se aos interesses coletivos. Em nome de uma suposta liberdade individual, tornam-se potenciais assassinos, pois é disso que se trata. Corolários de um liberalismo deturpado.
Causa-me profunda tristeza sair à rua e ver o número de pessoas sem máscara, ou com o acessório colocado propositalmente de maneira incorreta, o que dá no mesmo. Tenho ímpetos de chamar a atenção de cada um, mas seria uma atitude suicida, pois não tenho tamanho nem idade para tais aventuras quixotescas. Resta-me alterar ligeiramente a letra do Aldir Blanc e constatar, desconsolado, que as máscaras caem na pandemia, escancarando a imensa falta de cuidado reinante. Ainda temos um longo percurso civilizatório à frente.
Artigo publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 16/12/2020