Luiz A. G. Cancello
Moro com a irmã mais nova de mamãe. Ela recebe uma aposentadoria de pouco valor. Sustento-a, a bem dizer. Em troca — embora isso nunca tenha ficado explícito — faz comida, lava a louça e cuida da roupa. Na juventude, foi alvo de minhas primeiras fantasias eróticas, pois não temos grande diferença de idade. Hoje é apenas minha grande amiga. Não casei; tenho namoradas eventuais, um caso aqui, outro ali. Passei dos quarenta com o dedo anular incólume.
Mas não era disso que eu ia falar. Talvez essa introdução tenha relação com o relato a seguir, embora a conexão, neste momento, escape do meu entendimento.
Não é inteiramente verdade que titia lave a louça, pois há um objeto que faço questão de limpar. Trata-se da manteigueira. Temos uma peça de prata, com tampa, herança de família, onde o pacote de certa marca se assenta perfeitamente. Não compro a manteiga pelo gosto, já se vê, mas pela forma. Ainda não é esse meu tema principal, embora tangencie o eixo do que pretendo expor.
Adoro manteiga. Já tentei trocá-la por margarina, a conselho médico, mas foi impossível. Além dessa peculiaridade gastronômica, não tenho vícios, seja fumo, álcool ou qualquer tipo de drogas. Levo uma vida saudável, faço caminhadas diárias. Nos dias de chuva pedalo uma bicicleta ergométrica que, para espanto e orgulho de titia, não virou cabide, como em geral acontece com os aparelhos domésticos de ginástica aeróbica. A disciplina pessoal também não é o meu assunto, torna-se necessário esclarecer. Estas digressões iniciais, começo a ver, impõem-se como pano de fundo para o restante.
Já me flagrei untando o pão até que a manteigueira fique vazia, sobrando no fundo aquelas partículas de gordura grudentas, bastante conhecidas por quem lava a louça. O detergente comum deixa bastante a desejar nessa limpeza. Fica sempre a impressão de uma sobra, algo ainda viscoso, serviço mal feito. Poupo titia desse trabalho, como se verá.
Sou bastante perfeccionista e sempre tive uma forte tendência para os trabalhos manuais. Conserto aparelhos elétricos simples, faço pequenos reparos hidráulicos, instalo aparelhagem de som, prego botões e dou conta de alguns tipos de costuras, prendas possivelmente adoráveis para a esposa inexistente. Titia não mostra mais espanto, está habituada a ver as coisas sempre em perfeito estado. Isto, no entanto, não é o principal; trata-se de mais um detalhe do arcabouço da história.
Preciso retomar o fio da narrativa. Tenho dado voltas, bem sei, traçado zigue-zagues. Será um certo pudor? Em princípio, não creio. Fiz muitos anos de psicoterapia de grupo, experiência suficiente para deixar mesmo um sujeito como eu sem grandes problemas para falar de si. Sou capaz de fazer confidências até para um desconhecido com quem topei num bar. Freqüentemente tal situação é mais confortável que confessar-se para pessoas mais próximas, como titia. Nunca entendi esse paradoxo. Convivo bem com ele e volto a dizer: este não é o meu objetivo aqui.
O apego a objetos antigos está longe de me seduzir. É curioso como a manteigueira foge desse padrão. Um dia, há uns dois anos, o puxador da tampa se desprendeu. Era preso por um rebite. Consertei-o, e para isso precisei comprar a ferramenta apropriada. Fiquei orgulhoso de meu feito. Como já disse, titia já não reage com entusiasmo aos consertos, mas sei que comenta meus dotes com suas amigas. Deve apreciá-los. Mostro as bricolagens às poucas visitas que, vez por outra, vêm almoçar em casa aos domingos. Percebo o ridículo de exibir-me por tão pouco. É curioso como posso escrever sobre uma situação embaraçosa, enquanto vou adiando o objetivo do texto.
Lembro-me bem de quando lidei, pela primeira vez, com detergente. Havia entrado na universidade. Estava na tarefa de lavar a louça, na república onde morava com mais três companheiros. Fiquei fascinado com a cena em que o composto químico deslocava e dissolvia a gordura, tendo como fundo o branco do prato. Posso rever o movimento e pensá-lo como uma dança. Fiquei ali parado, contemplando a mudança das formas, quase em meditação. Pode parecer absurdo a quem está acostumado à faina diária de uma casa, como titia, mas o momento ficou gravado dessa maneira. Talvez aqui se mostre a raiz do que pretendo contar.
Almoço ao meio-dia e meia, sem concessões ao horário. Titia é tão sistemática quanto eu e assim se passam as coisas, em nossa casa. Falamos pouco, em geral sobre política, titia é bem informada; a vida pessoal fica fora da conversa. Em raras ocasiões abordamos fatos passados e, quando o fazemos, nenhum comentário é adicionado à descrição das cenas. Noto os olhares com que procuramos em vão, um no outro, a reação emocional. Somos bons artistas. É outra refeição, no entanto, a finalidade das minhas cogitações.
Levanto-me às seis e quarenta e cinco. Durante uma hora pratico exercícios físicos e tomo banho. Às oito sento-me para o café, junto com titia. Um quarto de hora depois ela vai para a varanda ler o jornal. Nos dias em que acaba a manteiga, demoro mais uns dois minutos à mesa, asseguro-me de estar só, de que nada a fará voltar à cozinha. Então vou até a pia examinar a manteigueira. Por um tempo indeterminado, contemplo o metal precioso maculado pelos restos de gordura. Com gestos comedidos, porém atentos à volta de minha companheira de casa, fervo água numa chaleira, na boca maior do fogão. Espero de pé, e agora a duração está abolida. Sou incapaz de olhar para o relógio. Aos primeiros sinais do vapor pego a alça, viro-me para a pia e despejo lentamente o líquido nas manchas amareladas. A matéria dança, escorrega, espalha-se, sinto a dissolução. Ressurge o brilho do fundo objeto, ainda sob uma camada de água. Com um garfo, inclino a manteigueira, esvazio esse conteúdo já translúcido mas ainda impuro, para enfim descobrir o espelho original da prata. Assaltado pelo pavor da chegada de titia, vejo-me, em êxtase, ali refletido. Nesse instante tudo vale a pena, a vida retoma o sentido. A cada dia aguardo, ansioso, que se acabe o próximo pacote de manteiga. Às vezes me excedo no consumo. Estou ficando obeso, apesar da ginástica.