Luiz A G Cancello
Era dia do meu aniversário. Logo depois da zero hora ganhei meu presente. Ela me deu uma camisa de um verde que não sei definir, com uma textura agradável, uma peça linda e muito elegante, até demais para meu jeito meio desleixado. À noite comemoraríamos a data num bar, cercados de uns poucos amigos. Durante o dia ela fez questão de passar a camisa, disse-me que fazia parte do presente. E lá fui eu, mais bem vestido que o habitual, todo mundo me abraçando, a roupa aos poucos sendo amassada pelos afetos, a melhor maneira de adquirir rugas em todas as peles que usamos.
À minha frente sentou-se um velho amigo. Conversávamos sobre os problemas da idade, ele é uns meses mais velho que eu. Alguns esquecimentos, a falta de paciência para certas coisas, e essa pequena falha motora chatíssima, a quase inevitável queda de um pedaço de comida ou umas gotas de molho na roupa, consequência talvez de um leve tremor nas mãos, ou uma desatenção, quem sabe uma falta de cuidado na hora de comer, Já não seguramos o garfo como antigamente? “Acho que vou comprar um babador”, disse ele, resignado.
Como era previsível, lá pelo meio da festa reparei uma nódoa na minha camisa, entre o terceiro e o quarto botões, contando de cima para baixo, na altura do abdômen. Não dava para saber se era da bebida que eu tomava, um suco de laranja sem gelo e sem açúcar, ou pior, se era o molho em que eu mergulhava os cubos de carne. “Suco de laranja mancha a roupa?”, perguntei à minha companheira, meio ressabiado, na esperança do menor dos males. Antes mesmo da resposta os olhos dela foram direto para a minha camisa, os relacionamentos longos dispensam explicações detalhadas. “Deixa quieto, um pouco de detergente resolve, em casa a gente vê isso.” Percebi que ela optou pela pior possibilidade. Assenti com a cabeça, encerrando o assunto. Teria de esperar um pouco, se fosse suco de laranja iria secar logo, ninguém notaria. Mas o tempo passava e a mancha continuava ali. Eu tentava afastar o pensamento de que todo mundo olhava para a minha barriga, onde estava escancarada a decrepitude, sob a terrível forma de uma nódoa, no sentido estrito e figurado. Por outro lado, sabia que era pura cisma, ninguém parecia prestar atenção ao meu descuido, ou seriam todos muito educados, não iriam me colocar numa situação constrangedora, logo hoje, dia do meu aniversário?
Para me livrar do conflito resolvi assumir a idade e as suas consequências. Falei para todos na mesa: “Gente, estou mesmo ficando velho, derramei molho na camisa nova.” A maioria não deu a menor bola para minha declaração, uma amiga apontou para o marido e disse, quem sabe para me consolar: “Ele sempre faz isso”, outro falou “Não esquenta, é normal” e voltaram aos assuntos que estavam rolando. Minha companheira balançou a cabeça, conformada, já conhecia o meu jeito de proceder.
O resto da noite correu tranquilo, as pessoas estavam alegres, falantes, alguns mais alcoolizados, eu sóbrio e ainda meio cismado, tudo dentro do normal. Meus olhos ainda teimavam, de quando em quando, em descer até a mancha, que tinha a forma de uma minhoca estampada entre os botões da camisa, um dedo acusatório que agora só eu via, uma sensação de impureza desproporcional ao fato, prometendo não me deixar em paz até o final da festa.
Alguém chamou o garçom, esse fotógrafo dos tempos de celular. É preciso registrar o acontecimento, antes que o pessoal comece a ir embora. A perspectiva é sempre a mesma, ele vai até a ponta da mesa, todos se inclinam de modo a sair no enquadramento. Meu braço esquerdo instintivamente cobriu a frente do corpo, ali onde estava a mancha, enquanto o direito abraçava minha mulher. Sorri, satisfeito com a perspicácia, mas não sosseguei enquanto não vi a foto. Na iluminação de um bar os detalhes não sobressaem, mesmo assim meus dedos aumentaram a imagem na tela, constatando que mal se distinguiam os botões da camisa, muito menos qualquer sujeira.
Na época dos smartphones, dizem, o que não foi filmado ou fotografado não existiu. Quase me convenci de que nada acontecera, a memória humana praticamente já não conta, daqui a muitos anos verei essa foto e nem lembrarei do molho de carne espalhado na camisa. De repente caí em mim. Eu estava à beira de me prostituir, submetido aos piores aspetos da pós-modernidade, fabricando uma falsa verdade, gerando uma fake news. Resolvi então registrar a mancha, para deixar gravadas minhas inseguranças, as nódoas da camisa e do caráter, para lembrar para sempre dos amigos que tão gentilmente ignoraram minha falha, para celebrar a generosidade da minha companheira. Fui ao banheiro, onde a luz era mais forte, e fotografei a mancha bem de perto, depois um pouco mais de longe, e novamente mais distante, de modo a não deixar dúvidas sobre a existência daquela coisa em minha roupa. Além disso, peguei o celular e fiz umas anotações. Escreveria um texto em casa, descrevendo as circunstâncias dos fatos, ilustrados pelas novas imagens.
Quando saí do banheiro alguém puxou o “Parabéns pra você” e o “Pique-pique”. Não soprei velinhas, não havia bolo, ainda bem, menos uma oportunidade para sujar a roupa. Em seguida as pessoas foram se despedindo, ficamos só dois casais, conversamos mais um pouco e fomos embora.
No outro dia, de manhã, ela se levantou antes de mim. Quando saí da cama, ainda sonado, ouvi sua voz vinda dos confins da área de serviço: “Já dei um jeito na sua camisa.” Fiquei confuso, demorei alguns segundos para agir. Fui ao encontro dela, abracei-a e disse o “Obrigado” de praxe. A mancha tinha saído, nenhum sinal do molho de carne, foi eliminado o sinal mais importante da minha falta, como alguém destrói a prova de um crime. Tomei o café às pressas, peguei o celular, fiz um upload das fotos para a nuvem, reli as notas e me pus a escrever, aflito para não deixar de lado nenhum detalhe.
Eu precisava documentar a mancha. Não poderia ser dissolvida no tempo, como se esvaneceu no detergente. Precisava sobreviver a mim nas imagens e na escrita. Quando acabei de escrever fiquei orgulhoso. Imprimi o texto e as fotos e mostrei-os a ela.
Enquanto eu a esperava ler, a camisa secava no varal, fazendo uma poça no chão da área de serviço. Ocorreu-me que talvez houvesse algum molho de carne diluído naquela água. Cuidadosa, ela evitou que os pingos manchassem o papel, apesar do meu desejo inconfesso.