Luanda, Lisboa, Paraiso, de Djaimilia Pereira de Almeida

Apreciação trabalhosa de Luiz A G Cancello

Aquiles nasceu em Luanda, com um defeito no calcanhar. Segundo os médicos, teria de ser operado aos 15 anos, em Lisboa. Cumprido o tempo, lá se vão Cartola, o pai, e Aquiles. Em Angola deixam Glória, a esposa e mãe. A realidade do outro hemisfério impacta seus planos. Aquiles é operado, mas a volta vai sendo adiada, por força das circunstâncias. O contato com Angola restringe-se a trocas de cartas e raros telefonemas. Em Lisboa vão parar no Paraíso, o bairro de lata, a favela. Nesse itinerário pai e filho vão se transformando e encontrando outros personagens. Uma amizade muito peculiar acontece.

Foi ao perceber que referir-se ao seu passado passaria por sinal de bebedeira Cartola chorou pela primeira vez em Lisboa, mas não lhe caiu nenhuma lágrima. Para o bem e para o mal, Aquiles testemunhou a autocensura do pai, ainda que parecesse esquecido de onde tinham vindo. Cartola mortificava-se de ter o filho como espectador da morte do homem que fora e de que, passado afinal tão pouco tempo, apenas a família de Luanda, com que falava ao telefone, se lembrava. Os telefonemas para Glória tornaram-se escassos por falta de dinheiro e porque lhe era insuportável interpretar ao telefone uma personagem de que apenas ela mantinha memória viva, obrigado que se sentia a mentir-lhe. “Vamos andando, Mamã, mas sem a graça de ninguém. O calcanhar eleva-se aos poucos, é preciso calma. (p. 72)

É um livro sobre projetos e circunstâncias aleatórias, sobre as surpresas do acaso, sobre a imprevisibilidade do destino. Mas é também um livro que fala da amizade. E do desalento.

Ao descreve Pepe, de quem Cartola será amigo, a autora faz um tipo de descrição sintética que acho brilhante:

Tivera, como qualquer outro, um desgosto de amor. Fora algures no Uíge, onde se dizia que deixara uma filha. Não era verdade. Emudecera ao ver nua a menina por quem se apaixonou e gastara o único alvorecer que passaram juntos a vê-la regalar-se com uma lata de sardinhas que surripiou da cantina do quartel. Ela tinha tanta fome que o rapaz sentiu o desejo dar lugar à compaixão, e foi-se embora com um beijo tímido, e a saber a peixe. Balabina gravou-se em Pepe como um ideal de beleza e quietude com que comparava todas as outras mulheres, seres que na sua sensibilidade alimentada a almanaques do caçador e fotonovelas eróticas cujas legendas em alemão não entendia ainda habitavam as florestas, montadas nuas em cavalos selvagens.

Só depois de me acostumar com a linguagem consegui apreciar o livro. Foi preciso insistir. Inicialmente as metáforas, imagens e comparações me pareceram estranhas, além da construção típica do português de Portugal. Por exemplo, ao descreve Cartola cantando, escreve: “O cantar saiu do quarto e propagou-se pelo corredor às escuras, descendo a escada em direção ao átrio. Saindo para as ruas, as notas esfumaram-se na humidade como uma molécula ínfima.” Confesso que a última comparação feriu meus ouvidos, achei-a estranha. Em outra passagem, ao retratar um médico amigo de Cartola, registra: “Ao pescoço, quando não estava em serviço, trazia uma echarpe de seda negra que se sugeria a quem o visse de costas como se soprada por um vento do Báltico.” Metáfora para o frio? A mim soa esquisito, no mínimo pouco familiar. No entanto, com o prosseguir da leitura, o encanto pelo texto foi se apresentando, e mesmo trechos que me pareceriam desconfortáveis no início começaram a fazer sentido. Do meio para o final do livro eu já estava capturado pelo estilo da autora.

E a maneira como olhava para o pai mudou. Trocaram os papéis. O pai passou a ser o estorvo adorado, a gargantilha ao pescoço. Aquiles odiava-o agora o suficiente para cuidar dele até à morte. A raiva tornou-o extremoso. Tratava do pai como se, descoberto o seu calvário, tivesse encontrado o sentido da vida. Dava-lhe o ombro quando o bagaço o vencia. Fechava-lhe os olhos se Cartola adormecia com eles abertos, como se desejasse despedir-se dele para sempre e, ao mesmo tempo, guardá-lo do mundo.

É preciso ler com o dicionário a postos, ainda bem que hoje o temos no celular. Há de se consultar muitos termos. Exemplos: consoada, Totoloto, esferovite e tantos outros. Seria interessante inserir notas ao pé de página, na edição brasileira. Com certeza tal providência tornaria a leitura mais escorreita.
Vale insistir e ir descobrindo o jeito peculiar de Djaimilia escrever. A autora ganhou diversos prêmios de Literatura em língua portuguesa, até mesmo o importante Oceanos. Não foi por acaso.